Anotações do livro – Fascismo à brasileira – Pedro Doria

Aproveito para “postar” trechos que separei da leitura do livro “Fascismo a brasileira″, de Pedro Doria.

Recomendo a leitura do livro completo.

Antes de Começar

Prezado leitor, nas próximas páginas segue uma história da Ação Integralista Brasileira (AIB), o maior movimento fascista do mundo fora da Europa entre os anos 1920 e 1940. Foi, também, o maior movimento popular de direita da nossa história – ao menos até o surgimento de Jair Bolsonaro. Em seu auge, a AIB contou com mais de 1 milhão de afiliados num país que passara fazia pouco dos 30 milhões de habitantes.

No Brasil, como em outros cantos, a esquerda tinha uma expressão para se referir a eles: os “encamisados”. De preto na Itália, de cáqui na Alemanha, de verde cá no Brasil. O apelido não veio à toa. Parte do éthos fascista era estar uniformizado, que remetia a uma padronização de toda a sociedade como eles consideravam ideal. Assim como remetia à disciplina militar pela qual cultivavam fetiche.

A cidade eterna

No final da tarde de 14 de junho de 1930, Plínio Salgado viveu o encontro mais importante de sua vida

Pois os esperando, com simpatia, estava il Duce, quadragésimo e mais jovem primeiro-ministro da história italiana. Benito Mussolini.

Estava a dias de completar 47 anos, Mussolini. Não era alto. Mas era imponente.

Dediquem alguns momentos desfazendo as falsidades que correm, sobre o regime fascista.

Plínio havia passado meses preparando aquela viagem que se iniciou pelo Egito, em abril, seguiu pela cidade santa de Jerusalém, daí Turquia, e ainda passaria por França, Alemanha e Portugal. Seus custos estavam sendo financiados por um amigo: Alfredo Egídio de Sousa Aranha.

Mussolini ou Plínio não tinham como saber, mas por aqueles meses, o Duce estava no auge de seu poder. Nunca mais seria tão grande, nunca mais seu futuro pareceria tão promissor, aqueles eram os últimos tempos de ambiente tranquilo. Exatamente um ano antes, o premiê havia sancionado, com o Papa Pio XI, o Tratado de Latrão.

Quando chegou ao Velho Mundo em busca da civilização original, Plínio não estava de todo perdido. Procurava, sim, uma nova ideia para formar o país, para governar, para dar estrutura a uma nação que funcionava mal.

O encontro com Mussolini foi apenas o momento histórico em que tomei a decisão, escreveu Plínio a um amigo, semanas depois, já em Paris. “Em Roma, tudo nos convida à luta. A nossa personalidade cresce agressivamente entre os vestígios dos povos que passaram a vida lutando.” Por tantos meses visitou tantos lugares. Teve até um encontro com o Papa. E era tão católico. Mas nada mexia com ele como il Duce, um turbilhão de emoções.

“Uma manhã, no alto do Janículo, com Roma a meus pés – o Coliseu e o Vaticano, o fórum romano e as Termas de Caracala, o Aventino e o Polatino, e os Palácios secundários que sobem e descem pelas Colinas, senti uma saudade imensa do Brasil. E sentindo esse amor pela Pátria, pensei em todas as marchas da cidade eterna e refletir sobre a necessidade que temos de dar ao povo brasileiro um ideal, que conduza a uma finalidade histórica. Essa finalidade, capaz de levantar o povo, é o nacionalismo, impondo à ordem e disciplina no interior, impondo a nossa hegemonia na América do Sul. Voltarei para combater esse combate cheio de entusiasmo.”

O OVO DA SERPENTE

O socialista herético se juntou a um grupo de esquerda pró-guerra que acabara de ser formado: o Fascio Revolucionário d’ Alcione Interventista. Fascio não era um termo novo na esquerda italiana. Aliás, tão pouco na esquerda Europeia. Quer dizer, literalmente, “um feixe de varas”.

Uma vara pode ser partida com o joelho. Muitas varas juntas não. Para os romanos, a união representava o estado. Para a esquerda do século XIX, o símbolo se reconstruiu como União do Povo. Mariane, a mulher ícone da República francesa, foi retratada inúmeras vezes com a fasces à mão, união solidária do Povo contra a aristocracia e o clero. Não era raro que o grupo de trabalhadores italiano, no ottocento, se organizassem em conjuntos chamados fasci, no plural, ou fascio, no singular. União. Até hoje, em inglês e francês, o termo para sindicato é union, como em italiano é unione.

Benito Mussolini se encaixou como uma luva nos planos de Giovanni Agnelli, da Fiat, e dos irmãos Mário e Pio Perrone, da Ansaldo, uma fabricante de armas. Foi encontrado por eles mais do que os encontrou. Tinha credibilidade junto à esquerda por vir da direção Nacional do PSI, a habilidade com argumentos e a cancha de editor.

Em 23 de maio de 1915 a Itália declarou guerra contra a Austrália e, nos dias seguintes, contra a Alemanha, a Bulgária e contra o Império Otomano. No dia 31 de agosto daquele ano, o futuro ditador foi convocado pelo Exército.

Em três anos e meio de guerra, os italianos perderam 600 mil homens; 1 milhão de soldados feridos, e destes, 220 mil arrastaram pelo resto de suas vidas mutilações que os incapacitaram por exemplo. Num repente, 7% da mão de obra masculina se foi.

A Itália havia se tornado uma nação dividida e ressentida. Nos últimos anos da Guerra, já farejando a derrota, o governo alemão começou a distribuir dinheiro entre os políticos marxistas do continente. Contando que se opusessem ao conflito, pretendia assim espalhar a cizânia, fortalecer a oposição à guerra, enfraquecendo convicções e, quem sabe, dinamitar politicamente os governos adversários. Em pelo menos um caso a estratégia deu certo. Quando embarcaram Vladimir Ilich Ulianov, um agitador russo de 47 anos que vivia no exílio suíço, num trem rumo à Estação Finlândia de São Petersburgo, puseram em marcha um fluxo de eventos que culminaria na transformação da Rússia czarista no primeiro país socialista. Ulianov entraria para a história com o nome de guerra que usava no partido: Lênin.

Não bastasse isso, a economia não ia bem. Não ia nada bem. As perdas materiais e humanas da Guerra representaram um custo alto para todo o continente, e, desde a virada do século, a Itália vivia uma lenta e dolorosa transição da economia agrária para a indústria.

Politicamente, o país sempre fora instável. Como apenas 10% da população votava, era natural o domínio do liberalismo latifundiário. Não significa que houvesse equilíbrio, e a média histórica diz muito: cada governo, cada gabinete formado naquele parlamentarismo, durou em média 18 meses. Desde a primeira legislatura, formada em 1871. Se os políticos optaram pela guerra também na fé de que após o armistício viria um novo Risorgimento, um novo boom econômico como aquele pós-unificação, viram sua ilusão frustrada. E assim, discretamente, começou a se formar um novo tipo de insatisfação política nas ruas. Uma insatisfação que contaminou uma gente com educação superior – jornalistas, advogados, professores -, porém empobrecida. Não pertencia a massa, tão pouco a elite. Eles consideravam a elite política medíocre, por ter sido incapaz de evitar a crise econômica e social que se instalara, e temiam, como muitos na Europa, que a instabilidade ainda maior que se impuseram sobre a Itália levasse a uma revolução comunista como a russa. Entre 1918 e 1920, a sombra daquela revolução que parecia ter vindo do nada e que depois era toda a estrutura de uma nação fazia parte dos pesadelos de muitos.

Juntem-se ao caldeirão social ainda todos os homens e rapazes que voltavam do front para suas famílias. Haviam testemunhado os horrores inimagináveis daquela guerra simultaneamente Bárbara e moderna, haviam vivido anos tendo por base emocional a camaradagem que companheiros de Regimento desenvolvem – baseada em hierarquia, disciplina, lealdade, no medo profundo e íntimo compartilhado, assim como o testemunho de atos de bravura que giravam em todos admiração e, às vezes, sincera gratidão.

Enquanto isso, a parcela dos socialistas que pretendia acelerar a revolução apostou numa estratégia baseada em semear o caos e agravar a crise. Greves que foram aumentando em frequência e em escopo. Greves que tanto paravam indústrias, fazendas e serviços públicos, estancando a economia, como espalhavam símbolos.

E que ápice. Em 3 de setembro de 1920, os metalúrgicos de Turim e Milão, armados, tomaram centenas de fábricas entre as duas cidades. Sua estratégia ia agora para além da greve. Queriam provar que seus Conselhos fabris, os comandos sindicais dentro de cada planta, eram também capazes de gerir os negócios. Um dos principais pensadores comunistas do país, Antonio Gramsci, viu neles o embrião de soviets italianos, a base sobre a qual um futuro governo comunista poderia se erguer.

Na noite de 23 de janeiro, em 1921, Benito Mussolini se pôs perante um público que incluía arditi veteranos da tomada de Fiume pelo poeta-soldado Gabriele d’Annunzio.

Em 31 de janeiro de 1921, quando as Patrulhas em Ferrara haviam apenas começado, Giacomo Matteotti, o principal líder do braço moderado entre os socialistas, se ergueu em plenário para falar ao Parlamento. Eram tempos violentos, ele disse, e todos os grupos políticos ali haviam sido responsáveis por brigas.

“Mas hoje a uma organização na Itália, uma organização publicamente reconhecida, assim como são conhecidos seus membros como o são seus líderes, como o são suas sedes, bandos armados que declararam – admitamos isto, lhes reconheço a honestidade – abertamente que atos de violência, de represália, ameaças, incêndios, execuções, são seu método para atacar qualquer movimento organizado pelos trabalhadores contra a classe burguesa. É uma organização de Justiça privada. Não há controvérsia nisto.” Então Matteotti se dirigiu ao premiê Giovanni Giolitti: “O senhor é cúmplice de todos esses atos de violência.

“É um erro grave acreditar que o fascismo deslanchou com um plano formado”, escreveu, em 1935, Palmiro Togliatti. Antes da guerra, portanto, mas quando Mussolini já tinha controle total da Itália e Hitler era chanceler na Alemanha. “O fascismo não nasceu totalitário, se tornou totalitário, se observarmos a primeira concepção das relações entre o cidadão e o estado encontraremos elementos similares ao anarquismo. O fascismo não pode ser definido de forma estanque, deve ser pensado como algo em desenvolvimento, nunca estático. É preciso observar que o fascismo nasceu do sindicalismo revolucionário. Ele incluiu as pessoas que se distanciaram dos sindicatos no racha intervencionista.

O ponto que fez Mussolini se afastar de forma determinante do marxismo, embora ainda pensando com uma estrutura marxista, foi o nacionalismo. Ao longo dos anos da Guerra, de alguma forma, em sua cabeça a nação substituiu a luta de classes. Karl Marx previu um colapso capitalismo, com a concentração do dinheiro nas mãos de poucos, que empobreceria as classes médias, forçando uma aliança natural com os proletários, que por inércia desembocaria numa revolução capaz de derrubar todo o sistema. Se no centro do ideário marxista está a ideia de que burgueses e proletários estão em conflito, o futuro Duce pôs no centro de sua ideologia ainda malformada a nação. No fascismo, os interesses tanto de proletários quanto de capitalistas deveriam estar submetidos aos interesses da nação.

“Os fascistas se opunham à burguesia tanto quanto se opunham aos socialistas”, observou um dos bons biográficos de Duce, Nicholas Farrell. “Ambos exaltavam uma classe ao invés da outra. Os fascistas exaltavam a nação, unida, não dividida.”

A data, 1921, é chave. “O fascismo”, como observou o secretário-geral do PCI, Palmiro Togliatti, “deve ser pensado como algo em desenvolvimento, nunca estático”. Em cada momento de sua existência, da criação do primeiro Fascio di Combattimento, em 1919, até a morte de Mussolini, em 1945, ele foi algo diferente. Mas ali no Nascimento, antes de chegar ao poder, o fascismo foi essa estranha costura à direita de Bakunin com Marx e Garibaldi.

O crescimento de fascismo vinha num ritmo vertiginoso. No início de 1922, Benito Mussolini já tinha sob seu comando o maior exército privado do mundo. Assim  como tinha popularidade. Em maio, um contingente de 63.000 camisas negras marchou sobre Ferrara. Seu alvo não era mais sindicato algum. Era o próprio governo. Os homens ocuparam a cidade por dois dias. Intimidaram parlamentares a renunciar e assumiram a administração. Dois dias depois, marcharam sobre Bolonha. Em horas, o prefeito deixava a cidade. Ravena, Forli, Gênova. No final de julho, socialistas e comunistas decretaram greve geral no último esforço débil. Se o governo não conseguia conter os fascistas, um movimento de trabalhadores o faria. Mas já não eram os mesmos de dois anos antes. Os camisas negras enfrentaram os grevistas e encerraram os movimentos. No dia 3 de agosto, marcha sobre Milão, invadiram a câmara e obrigaram os vereadores de esquerda a renunciar.

Mussolini nunca esteve presente nesses eventos. Liderava a distância, cuidadosamente dissimulando a compostura de parlamentar. Como se nada tivesse com o assunto. Quando subiu ao palanque para falar a um grupo de 30 mil dos seus em cremona, em setembro, não conseguiu. “A Roma”, gritavam os homens. “A Roma!” Mussolini não disse nem sim nem que não.

Na noite de 27 de outubro daquele intenso ano de 1922, il Duce dos camisas negras e sua mulher, Rachele, ocuparam calmamente uma frisa do teatro Manzolini, de Milão, para assistir a uma comédia. Como seus binóculos, os outros espectadores não tiravam o olhar deles, que permaneciam impassíveis. Naquela mesma noite, apreensivo, o premiê adentrou o Quirinal, palácio do Rei Vittório Emanuel III, com um pedido: ele assinaria o estado de sítio, permitindo ao exército que resistisse a uma invasão fascista? Sua Majestade disse sim. Porque naquela madrugada, vindos de todo o Norte, via trem e a pé, 30 mil camisas pretas marchavam contra Roma. Mas o governo não sabia quantos eram – 60 mil, diziam uns; 100 mil, outros. Vottorio Emanuele não assinaria o decreto. Entre policiais e soldados, a capital não tinha mais que 8 mil homens a defendê-la. Temeu uma carnificina. Temeu até algo pior. Sabia da simpatia dos militares pelos fascistas. Se desse uma ordem e não lhe obedecessem, arriscava a queda da própria monarquia.

Quando o dia amanheceu, a Itália não tinha mais primeiro-ministro e o telefone tocou na casa de Benito Mussolini, em Milão. O secretário do Rei lhe perguntava se aceitaria para formar gabinete, com premiê. Naquela noite, tendo recusado, il Duce embarcou no trem comum a Roma.

Seu movimento tinha quatro anos. Ao final do segundo, quase morrera por inanição. Ao final do segundo, quase morrera por inanição. Ao assumir o poder, só o deixaria, seu corpo triturado, chutado, destroçado pela multidão, 23 anos depois.

Isso só aconteceria depois de tudo. Porque, no início, ainda foi um premiê comum, Benito Mussolini. Ainda seria necessário um último ato de audácia e terror para o homem de olhar penetrante e queixo quadrado se tornasse o Mussolini que Plínio Salgado conhecerá, numa tarde de 1930.

No dia 30 de maio, em 1924, Giacomo Matteotti se ergueu perante o Parlamento lotado.

Lemos na imprensa e ouvimos dos oradores fascistas que este governo nem sequer se sentia sujeito a resposta eleitoral. Nenhum eleitor italiano esteve de fato livre para votar. Há uma milícia armada nas ruas. Os Deputados gritavam, mas não Mussolini. Sentado, circunspecto, o primeiro-ministro observava a movimentação e ouvia atento o líder da oposição.

Onze dias após o discurso. O corpo de Giacomo Matteotti foi achado bem mais que um mês depois. Pelo menos 10 mil pessoas acompanharam o cortejo fúnebre.

Em 3 de janeiro do ano seguinte, foi Benito Mussolini quem se pôs de pé perante os parlamentares que ficaram. “A lei afirma que a Câmara dos Deputados tem o direito de acusar os ministros do Rei perante o Superior Tribunal de Justiça”, afirmou.

“Pergunto formalmente se a alguém, dentro desta câmera ou fora dela, que planeje fazer uso deste recurso legal. Pois então declaro, perante esta Assembleia e todo o povo italiano, que por moral e histórica de tudo o que se deu.

A Itália, senhores, quer paz, quer tranquilidade, calma para trabalhar. Pois nós lhe concederemos isto com amor, se possível, ou com força, se necessário. As próximas 48 horas essa situação se encaixará. Não há capricho pessoal ou desejo de poder. O que existe aqui é um amor incondicional pela Pátria”.

O ovo explodiu.

Mussolini tinha apoio popular. E paulatinamente, nos meses e anos seguintes, il Duce foi desconstruindo a frágil democracia italiana.

Nas escolas, crianças passaram a aprender, junto a língua e as primeiras operações, também que a Itália era o berço da civilização, o centro da Europa.

Em 1924, todos os partidos foram abolidos e a está estabelecer que o fascio substituiria o emblema da Casa Real de Savóia como símbolo do país.

E se há muito de mito na história de que os três cumpriam sempre seu horário – a Itália não deixou de ser Itália -, haveria, sim, ordem. Aquele filho de vereador garibaldino, um socialista com quedas anarquistas, havia, pela primeira vez, estabelecido ordem na Itália.

4 DE OUTUBRO

Quando a década de 1920 entrou, ainda chamavam o Terrível conflito terminado em 1918 de “a guerra para terminar todas as guerras”.

A Alemanha vivia o princípio eufórico, liberal, e talvez até libertino, da República de Weimar. Adolf Hitler ainda estava para começar a chamar atenção com sua capacidade de oratória, recém filiado que era ao partido dos trabalhadores Alemães. Lênin enfrentava uma crise de fome na Rússia, lutava uma guerra civil e ainda tentava inventar, na prática, como funcionaria um governo comunista. A União Soviética ou mesmo a ideia de que em Moscou poderia nascer uma potência militar não ocorreria a ninguém. Não parecia que iria ocorrer uma nova Guerra Mundial, os grandes regimes totalitários ainda estavam para mostrar suas garras. O Holocausto não era projeto senão de algumas mentes doentias, e pouco poderiam imaginar que um dia estas teriam poder para matar aos milhões.

No caso de Plínio Salgado, foi por conta desse ambiente, mas também por causa de duas mortes.

Plínio nasceu na pequena São Bento do Sapucaí, uma cidadezinha colonial no alto da Mantiqueira, onde Minas e São Paulo se encontraram. No dia de seu nascimento, 22 de janeiro, em 1895, a vila pertencia a Minas, só depois passou ao estado vizinho. Prudente de Morais, o primeiro presidente civil eleito pelo voto, estava havia dois meses no governo, e a república era só promessa.

Aos 23, tinha uma ideia mais ou menos arrumada de como o mundo funcionava na cabeça e na falta do diploma de advogado, se fizera, como outros tantos autodidatas, jornalistas, e de jornalista, como quase todos os homens na família, político. Circulava dando palestras e promovendo reuniões nas cidades próximas. Criou dois clubes de futebol, fundou um cenário – o Correio de São Bento – e se juntou ao grupo que criava, ali pelo Vale, o Partido Municipalista. No ano seguinte, elegeriam o primeiro deputado. Na capital, tanta revista do Brasil de Monteiro Lobato, como o diário Correio Paulistano começaram a publicar textos seus. De alguma forma, sem ter conseguido deixar o pequeno Universo de sua vila, estava enfim ganhando o mundo.

O encontro com a vida política mais preocupado com as questões do Brasil. A viuvez precoce o fez ser tomado por uma vida espiritual. Reencontrando-se com a Igreja Católica, Plínio abraçou um novo leque de autores brasileiros e contemporâneos. “Vinham todos os dias, pela manhã e à noite, Augusto Frederico Schmidt, Raul Bopp, aparecendo às vezes Mário Pedrosa e Araújo Lima”.

As páginas de Farias Brito despertavam, porém, no meu espírito.

De Farias Brito, pulo para o sergipano Jackson de Figueiredo.

Alberto Torres também viveu uma conversão, mas não espiritual. Fluminense de Itaboraí, se lançou político como um Liberal Republicano em pleno império. Parlamentar de tantos mandatos, Deputado constituinte na virada para o novo regime, Ministro da Justiça no governo Prudente de Morais, Ministro do Supremo Tribunal Federal. Aí largou tudo por desistência, por não ver solução. Desencantou-se. Tornou-se antiliberal. A mão invisível era coisa de iludidos, uma abstração que em verdade nada criava. Aquilo que chamou “democracia política” não conseguiria encarar o trabalho que precisava ser feito. Defendeu que se fundasse uma “democracia política”. A democracia social substitui o encargo de formar e apoiar o cidadão pelo encargo de formar e apoiar o homem. Formar o homem nacional é o primeiro dever do Estado moderno.”

O estado precisava, isto sim, criar a nação. O velho político deixou de acreditar no sistema eleitoral e partidário. “O parlamentarismo é a antítese da organização, é o regime da dispersão, da vacilação, da crise permanente”, escreveu. “O Brasil carece de um governo consciente e forte, seguro de seus fins, enérgico e sem contraste”.

Também Fluminense como Torres, Saquarema e uns 20 anos mais novo, Francisco José de Oliveira Viana publicou o primeiro livro em 1918 e no ritmo pesado passou o resto da vida entre política e a escrita de uma ideia de Brasil, Via nele um país incompatível com o liberalismo. Não era um povo, o brasileiro, capaz de solidariedade social, de pensar no interesse coletivo. A ideia, portanto, de que partidos pudessem representar correntes de pensamento na sociedade era ilusória. Que eleições fossem capazes de resultar em um projeto comum era falso. O Brasil de Oliveira Viana precisava criar um sistema de governo compatível com sua natureza. Propôs, então, que a sociedade se dividisse em grupos profissionais, reunidos em federações e sindicatos, e que cada categoria elege representantes para um Parlamento classista. Esse Parlamento auxiliaria em executivos forte e centralizador, que mudaria o estado e inventaria um novo Brasil.

Com esse pacote de influências intelectuais conduzindo sua ideia de país, não que o despertou em Plínio encontrar na Itália, dez anos depois, aquele regime baseado no estado centralizador, preocupado em mudar a ideia de nação organizado em entidades classistas – corporativista -, obcecado por ordem e disciplina. E se a igreja tinha um papel próximo, embora não tão próximo, isso seria fácil de corrigir numa versão brasileira.

Já passava das 19h naquela quarta-feira, 15 de fevereiro em 1922, quando os automóveis começaram a chegar ao Theatro Municipal, um prédio em estilo que, fundado dez anos antes, pretendia oferecer à capital paulista um ponto de cultura nobre, digno de qualquer cidade cosmopolita.

A semana foi organizada para que o público fosse recebido na segunda, na quarta e na sexta-feira, cada noite celebrando uma forma de arte.

Até hoje há debates sobre quem esteve, quem declarou. Na lista publicada dois dias depois pelo Jornal do Commercio está indicado que Plínio Salgado subiu ao palco e leu coisas suas.

Foram aqueles, anos de trabalho intenso e aprendizado. Firmou-se, no início, ainda sem verbalizar, com mais segurança numa visão do país. Construiu laços, se inseriu na dinâmica política paulista. Faltava era lidar com suas ambições, que não passavam por ser jornalista, muito menos assistente paralegal, que muitas vezes até pagava bem. Queria ser político e precisava lançar um romance. Um Romance no qual pudesse retratar o contraste do país verdadeiro, que encontrava no interior, e aquele ilusório da capital, contaminado pelo estrangeiro nos gestos, nos hábitos, nas roupas. Havia uma alma brasileira por ser recuperada que deveria ser abraçada para que enfim o Brasil pudesse ser grande. Política e literatura caminhavam juntas.

Plínio queria ganhar uma voz pública que alcançasse mais gente.

“Após a Semana de Arte Moderna em 1922”, lembrou mais de meio século depois, “deu-se uma diáspora dos elementos que a promoveram”. Mas ouvir um denominador comum: o sentido brasileiro dos novos literatos e artistas.” O que os unia era a busca pela construção de uma cultura brasileira para o futuro. O que os dividiu foram visões artísticas e políticas muito divergentes. Algo similar ocorria na Europa. Os futuristas italianos abraçaram o fascismo da mesma forma que os surrealistas franceses e espanhóis mergulharam na extrema esquerda. A partir de 1924 se iniciou uma guerra de manifestos que cindiu os participantes da semana de 1922. E quem o disparou foi Oswald de Andrade.

Oswald vinha de uma família rica e muito respeitada.

Cresceu rico, fez-se ousado, talentoso e, como todos no cume da Elite Paulista, viveu entre Paris e a capital. Suas primeiras peças de teatro, escreveu-as em francês. E estava justamente voltando de uma Paris em plena explosão criativa dos anos 1920, com a cabeça fervilhando e acompanhado da nova mulher, a pintora Tarsila do Amaral, quando ao aportar no rio fez publicar, no Correio da Manhã, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. O ano: 1924.

“A poesia existe nos fatos”, escreviam já na abertura.

Cassiano Ricardo seria bem mais sucinto. “Oswald havia descoberto o Brasil na Europa, queríamos descobrir o Brasil no Brasil, mesmo.”

Estava rompido. E o rompimento não era artístico, era político. Oswald e aqueles que mais tarde se batizariam antropofagistas eram revolucionários internacionalistas. Plínio e os que adiante se batizariam integralistas eram nacionalistas e, no mínimo, conservadores. Mas todos modernistas, todos apontando uma visão de futuro, fosse baseada em vanguardas, fosse em tradição.

O estrangeiro estava escrito.

No início de 1926, Cassiano Ricardo pediu os originais para poder apreciar em casa com mais calma.

Foi no mesmo ano que o Governador Júlio Prestes o convidou para concorrer a uma cadeira na Assembleia Legislativa. Era um escritor conhecido, circulava bem entre quem era relevante na capital, redator do Correio.

Plínio Salgado é um homem que pensa”, escreveu o poeta Augusto Frederico Schmidt. “Fez-se só como pensador. Sua Vitória é Vitória do homem da Inteligência brasileira que, como o homem do nosso mato, foi relegado para o mais injusto e revoltante esquecimento”.

“Chegada alguma unidade de renovação do Congresso Paulista, o terceiro distrito apontou, entre os mais dignos de seus filhos, o nome já glorioso de Plínio Salgado.

Mas renovação era mesmo o projeto dele. Queria reformar a assembleia e o PRP. Mas descobriu que não conseguiria. Mudança, só com uma revolução. Uma revolução que o deputado de 32 anos não conseguia imaginar vindo. Foi nesse cenário de desânimo que um velho amigo o procurou.

 Alfredo Egídio de Souza Aranha tinha um sobrinho. Chamava-se Joaquim Carlos. O período no qual trabalharam juntos no escritório de advocacia despertara, em Alfredo, um imenso respeito por Plínio e suas ideias. E ele tinha uma proposta: uma longa viagem da Terra Santa até a França, na qual o deputado, devidamente licenciado, poderia apresentar o velho mundo ao rapaz e fazer daquilo uma grande aula.

 Alfredo esperava que na Europa Plínio abrisse seus olhos, ganhasse ele próprio o mundo e trouxesse para o Brasil novas ideias políticas.

Quatro de outubro, 1930. Um sábado. Dia em que Plínio Salgado aportou ao país vindo pelo navio Duilio, com a cabeça fervilhando após a viagem à Europa. Véspera da goleada de 7 do Palestra sobre a América. Um dia 4 no qual, em nenhum dos jornais do país, foi publicada a notícia mais importante do momento. Porque, na tarde anterior, um dia 3 modorrento em Porto Alegre, um ataque liderado por Osvaldo Aranha, primo irmão de Alfredo Egídio, terminou com a rendição do quartel general da terceira região militar. O Brasil estava às portas de uma revolução.

A FORMAÇÃO DE UM LÍDER FASCISTA

Novos regimes nascem em confusão, encontram equilíbrio, no equilíbrio se confortam, e no conforto amolecem sem perceber as transformações ao redor, que terminam por fazê-los entrar em decadência. Até que caem de velhos.

Em 1922, jovens Oficiais do Exército Brasileiro formados na primeiríssima turma que profissionalizou o preparo de oficiais, se rebelaram contra o governo. Faziam, todos eles, parte da gente pobre que ascendia socialmente pelo serviço público. Entre o levante no Forte de Copacabana, em 1922, e a Revolução de 1930, passaram-se oito anos intensos. Os atendentes foram presos, se exilaram, voltaram do exílio para novamente se rebelar, chegaram a controlar São Paulo por um mês, para, então, partir em marcha pelo Brasil tentando emplacar a revolução. A Coluna Prestes frustrou-se, seus comandantes voltaram ao exílio para retornar ao país de novo nos primeiros meses de 1930.

Mas só em 1930 veio a racha fatal. Minas rompeu com São Paulo e apoiou a candidatura à presidência de certo Governador Gaúcho.

Aquele Governador Gaúcho derrotado no leito fraudado, Getúlio Vargas, mas com ele também Osvaldo Aranha, Luiz Carlos Prestes, Eduardo Gomes, Juarez Távora, João Alberto.

E, mesmo sem ter participado da revolução, ganharia muito espaço um ainda jovem deputado estadual Paulista pelo partido do regime que caía, o PRP: Plínio Salgado.

“As tropas do Sul batem as fronteiras de São Paulo”, escreveu em carta ao poeta Augusto Frederico Schmidt, no dia 14.

“Que ideias trazem? Elas machão com essa bandeira vaga, imponderável, indefinível, de liberalismo. Que é o liberalismo? E nós, que vamos nos encontros delas, combatemos em nome de quê? Se vencermos, o que faremos? Manteremos as instituições para possibilitarmos novas revoltas e nova confusão? Continuaremos a manter essa mentalidade regional, estreita e intransigente, que é todo o fruto do regime federativo? Então para que tanto sacrifício? Há um desequilíbrio evidente na evolução política, econômica, social dos Estados. Nós temos transplantado, para um outro plano, a mesma equação de Canudos”. Cada vez Mais nutria a impressão de que a política que dava ao estado tanta Independência impedia o nascimento de uma cultura política genuinamente brasileira. Nacionalista, não regionalista.

“Quero muito conhecer pessoalmente Plínio Salgado”, disse João Alberto a Oswaldo Aranha, o número dois do regime, no diálogo reconstruído por Mário Graciotti. “Sei que é um belo escritor e político nacionalista. Basta ler a carta que escreveu ao Doutor Júlio Prestes.

Osvaldo era o nome certo para fazer a apresentação do deputado estadual e escritor.

Não que conhecesse.

Mas ocorria de Osvaldo Euclides de Souza Aranha ser, assim como Alfredo Egídio de Souza Aranha, bisneto da Viscondessa de Campinas, como eram ambos sobrinhos-netos tanto do Marquês de Três Rios quanto da Baronesa de Itapura. Os pais eram primos-irmãos, e, correndo a ascendência de século em século, os seus já caminhavam ali entre São Paulo e São Vicente nos tempos em que as cidades nasciam. Osvaldo tinha, sim, como localizar Plínio Salgado. Era o mecenas do escritor. E primo, naquela família, era coisa que todos levavam muito a sério.

A revolução imposta por Getúlio Vargas mexeria na estrutura social brasileira. Daria forma a sindicatos, protegeria com novas leis os operários, e para os servidores públicos construiria uma extensa malha de segurança. Faria tudo isso, porém, sem trocar as elites. Sai um Souza Aranha, entra o outro.

Foi no fim de tarde que Alfredo Egídio bateu à porta para levá-lo ao palácio dos Campos Elísios. Não para um interrogatório, muito menos para prendê-lo. Para conversar com o interventor, que àquela altura já lera também muitos de seus artigos publicados pelo Correio no passado.

O que Plínio perceberia nas semanas e nos meses seguintes é que encontraram tanto no Coronel João Alberto quanto em Osvaldo Aranha homens simpáticos a suas ideias. Contava, sentido, com o valioso endosso de Alfredo.

Ali entre a angústia do dinheiro parco e a mágoa de mortes de pessoas que lhe foram tão caras, vivia um monte de intensa criatividade e, ansioso, tentava aproveitar o espaço que lhe era oferecido. Tinha uma intuição a seu respeito, Plínio Salgado, de que era um grande homem em potencial. Precisava só daquele passo a mais. Um homem de ideias, um ideólogo que naquele momento necessitava encontrar um líder carismático para levar adiante seu projeto.

Norte-americanos e britânicos seguiam apostando na democracia liberal. Mas a pesada crise econômica iniciada em 1929 provocava dúvidas sobre a eficácia do regime por toda parte. Conforme se consolidava a ideia de que um estado forte era necessário para organizar a economia em colapso, não foi só o liberalismo que encontrou inimigos. Anarquistas, ainda mais avessos ao controle estatal do que liberais, se viram solidários minguando. Enquanto isso, a União Soviética promovia o comunismo, e a Itália, o fascismo. Uma à esquerda, outra à direita, samba proponente de sem centro centralizado e com total controle. A questão econômica estava no centro das preocupações de Plínio.

A missão econômica principal por ele imaginada, portanto, era acelerar a industrialização brasileira. O responsável por esse sucesso deveria ser um estado central. Mas esse não seria apenas um problema de Engenharia, de erguer enfim infraestrutura de transporte, de energia, ou mesmo de distribuição de fábricas. Seria necessário, simultaneamente, organizar o trabalho e preparar as pessoas.

Para ele, organizar o trabalho e preparar as pessoas só seria possível no Brasil, deixando de lado a questão racial. Inspirado pelo romantismo literário, aquele traço que todos, juntos, poderiam clamar como legitimamente seus.

Para tudo funcionar, a educação era estratégica.

Não era, um promover autonomia, e sim para uniformizar os brasileiros e sua compreensão do país, do Estado, da família.

Pela primeira vez Plínio Salgado punha no documento político seu projeto pessoal. Ali estava toda a sua ambição.

Publicado em 3 de março de 1931 e, três dias depois, lido na rádio, o manifesto foi muito mal-recebido.

Mal-recebido, talvez, mas não por todos. Não por quem importava. O diálogo cada vez mais constante com Osvaldo Aranha, assim como a publicação daquele texto, teria consequências: a criação de um jornal, que Alfredo Egídio se comprometeu a financiar. Por sede, arranjaram um pequeno prédio gravado no centro de São Paulo, na Rua José Bonifácio, ao lado da Praça da Sé, a passos do campus da faculdade de direito do Largo São Francisco, a 10 minutos a pé do Teatro Municipal ou da Praça da República. Para auxiliar Plínio a botar A Razão de pé, foi convocado do Rio o Jovem Francisco de San Tiago Dantas. De saída, por conta de seu lugar-tenente no matutino, casa em definitivo um pé na principal Faculdade de Direito da capital, o Rio de Janeiro. O outro, pela proximidade, seria posto na principal Faculdade de Direito Paulista. Faria, ambas as escolas, algumas palestras nos meses seguintes. E os primeiros seguidores que conquistaria seriam justamente esses futuros juristas, formados pelas melhores escolas, em geral cerca de dez anos mais moços do que ele.

Aos poucos, primeiro quatro, depois doze, e então algumas dezenas de estudantes do Largo São Francisco foram atraídos com alguma curiosidade.

Em 9 de julho, São Paulo mergulhou no conflito armado contra o governo federal – a Revolução Constitucionalista de 1932. A guerra se estendeu até 2 de outubro, morreram mais de 6 mil pessoas, e, ao fim, pela segunda vez em tão pouco tempo, tropas gaúchas tomaram a cidade mais rica do país.

Muitos anos depois, quando em 1969 se inaugurou uma larga Avenida unido Norte e Sul da capital paulista, cortando justamente o caminho que fizeram os manifestantes naquela noite, foi batizada em sua memória. É a Avenida 23 de Maio. Na qual desemboca na Avenida 9 de Julho, uma metáfora viária da história que passou.

A guerra terminou em 2 de outubro. No Dia 5, Plínio deixou uma gráfica carregando várias cópias de seu novo Manifesto. De lá, tomou um carro para amanhecer na pequena Cruzeiro, a 270 km da capital paulista, fronteira com Minas, quase Estado do Rio. Foi recebido em seu posto de comando pelo General Pedro Aurélio de Góes Monteiro, que comandará a vitória getulista, a quem levava o texto para lesse. “Demorou-se na conferência”, observou o repórter de plantão do Correio da Manhã, intrigado sem saber do que tratava. Na noite seguinte, 7 de outubro, recebeu emprestado do novo governo Theatro Municipal, o mesmo que o receberá em seu palco um tanto jovem, durante a semana de Arte Moderna, exatos dez anos antes. Dessa vez, numa reunião fechada com os membros do SEP, o que leu foi o Manifesto da Ação Integralista Brasileira, que a história batizou como Manifesto de outubro de 1932. É a data, 7 de outubro, que seria lembrada como a de fundação.

Se no Manifesto escrito para a Legião ele havia sido ambíguo, cauteloso, não mais. Neste, não fez preâmbulo histórico, não sua avisou o que pretendia dizer, bem o contrário. Foi direto. Foi claro.

O Brasil não pode realizar a união íntima e perfeita de seus filhos enquanto existirem estados dentro do Estado, partidos políticos fracionados a nação, classes lutando contra classes, indivíduos isolados, exercendo a ação pessoal nas decisões do governo; enfim, todo e qualquer processo de divisão do povo brasileiro. Por isso, a Nação precisa de organizar-se em classes profissionais. Cada Brasileiros se inscreverá na sua classe. Essas classes elegem, cada uma de per si, seus representantes nas Câmaras Municipais, nos congressos provinciais e nos congressos Gerais. Os eleitores para as câmaras municipais elegem o seu presidente e o prefeito. Os eleitos para os congressos Provinciais elegem os governadores da província. Os eleitos para os Congressos Nacionais elegem o chefe da Nação, perante o qual respondem os ministros de sua livre escolha.

Precisa ter uma perfeita consciência do Princípio de Autoridade. Precisamos de autoridade capaz de tomar iniciativas em benefício de todos e de cada um; capaz de evitar que os riscos, os poderosos, os estrangeiros, os grupos políticos exerçam influência nas decisões do governo, prejudicando os interesses fundamentais da nação.

O cosmopolitismo, isto é, a influência estrangeira, é um mal de morte para o nosso Nacionalismo.

Pretendemos realizar o estado Integralista, livre de todo e qualquer princípio de divisão: partidos políticos; estadualismo em luta pela hegemonia; lutas de classes; facções locais; caudilhismos.

Mas não bastava manifesto, concordância dos membros da SEP, ou simpatia e alguma ajuda do Governo Federal. Um movimento Nacional se fez com gente dedicada e evitando dispersão dos possíveis simpatizantes.

A AIB já nascia com um pé na Escola Nacional de Direito do Rio, por intermédio de Osvaldo Aranha. Outro pé estava na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em São Paulo, que vinha pelas próprias relações paulistanas construídas pelo fundador.

E, quase gravado o mês após a leitura do Manifesto, em 5 de novembro abriu novamente as portas do Theatro Municipal. Agora, para uma reunião aberta. Se a primeira ocorreu em silêncio, combinada pelas Idas e Vindas de Plínio, negociada com autoridades, planejada entre homens que já se conheciam havia muito, esta foi diferente.

Naquela noite, um jovem estudante Paulistano de direito, filho de italianos, apareceu. Ele havia conhecido clinio não mais que algumas semanas antes. Chamava-se Miguel Reale. Apareceu também um historiador cearense que fixará casa no Rio de Janeiro, membro já havia 10 anos da Academia Brasileira de Letras, chamado Gustavo Barroso.

Eles não tinham como saber, mas talvez já ambicionassem, que formariam, em conjunto com o fundador da AIB, seu trio de ideólogos. Se na Europa os movimentos fascistas nasceram amealhando simpatizantes entre os soldados retornados da Primeira Guerra, no Brasil surgiu entre intelectuais.

Em 23 de abril de 1933, um grupo de 40 homens, entre estudantes e operários, se pôs em marcha pelo centro de São Paulo, para estupefação geral. “Seus Passos ocorreram nas ruas e foram ouvidos em todo o Brasil”, se lembraria Plínio Salgado, tentando imprimir um tom épico à cerimônia.

Não seria poucos a fazê-lo. Aquele 1934 se encerraria com 180 mil afiliados. Em 1936, 918 mil, para, no ano seguinte, ultrapassar a marca de 1 milhão. Quando desfilaram pela primeira vez, foi sem autorização do Governo Federal. Uniforme, só as forças armadas podiam ostentar. Mas, além de Osvaldo Aranha, Plínio havia também conquistado Góes Monteiro. O general vitorioso da Guerra Civil, feito Ministro da Guerra, em algumas semanas concederia uma autorização especial para o uso da roupa. E nos anos seguintes, sempre que pode, citou na imprensa estar lendo os livros do escritor, jornalista e agora líder político.

UM INTEGRALISTA NÃO CORRE, VOA

Nunca o Brasil havia testemunhado uma marcha como aquela. Só que eles que chegavam à praça ainda não sabiam, mas seu inferno estava para começar.

A Frente Única Antifascista ganhara sua primeira missão: impedir o sucesso da parada de 7 de outubro. Também ali na sala, outro homem muito experiente, mas esse de uma experiência militar, já começava a planejar a ação. O coronel João Cabanas. Aquela história que eles estavam vivendo, a esquerda repetiria por décadas no futuro.

Gustavo Barroso era também nazista.

Miguel Reale era fascista à maneira italiana.

E a principal diferença entre as vertentes alemã e italiana da ideologia encamisada é a ênfase, a obsessão, que Adolf Hitler e seus punham na repulsa ao povo judeu. Barroso era virulentamente antissemita.

O antissemitismo não incomodava Plínio, e poder contar com o ingresso de um ex-deputado, intelectual reconhecido e ainda por cima presidente da ABL em seu movimento nascente faria muito por seu prestígio. Teriam, os dois, uma relação cheia de tensões e disputas por poder. Mas também com momentos de afeto. Foi Barroso, afinal, quem primeiro incentivou Plínio a se entregar aos discursos de improviso – e o fez pregando-lhe uma peça, sumindo com o texto do discurso naquela apresentação manauara. Pregar peças, surpreender, sempre um traço seu. “Alto de porte marcial, parecia ter nascido para comandante da milícia”, o descreveria o terceiro líder do movimento, Miguel Reale. “Milícia a cujos desfiles assistia com olhos saudosos dos heróis que cultuara em suas pesquisas históricas, ostentando no peito as condecorações que envaideciam.”

Foram muitas as tensões, de fato, mas não seria Barroso o primeiro a questionar Plínio como líder.

“Deus, Pátria e Família”.

“Pelo bem do Brasil, Anauê”.

Entre 1932 e 1933, estudantes vindos de boas faculdades e intelectuais se juntaram à AIB, dando forma à elite pensadora do movimento. Em viagens pelo Brasil, Plínio, Barroso e Reale foram criados núcleos regionais, de forma a “capitalizar” a instituição.

Quando encerrou seu discurso na abertura do congresso, Plínio voltou a se sentar. Assumiu o púlpito, então, um dos dirigentes nacionais que leu o Manifesto assinado por todos os delegados de todas as províncias aclamando o escritório como Chefe Nacional. Comandante supremo e indiscutível, ninguém poderia questionar. Um a um, então, os chefes provinciais foram chamados a se postar diante do líder. Braço lançado à frente na saudação Romana, gritaram. “Juro, Anauê, Plínio Salgado. A cerimônia ali marcaria para sempre a Ação Integralista Brasileira. O juramento de Fidelidade Ao chefe nacional, agora um título oficial se tornou parte básica da cerimônia de aceitação de qualquer integralista. Quaisquer dissidências não seriam toleradas.

O congresso estabeleceu que o Chefe Nacional teria a seu dispor um Conselho Nacional com quem ele poderia se consultar – todos os membros seriam indicados pelo próprio Plínio, de acordo com seus critérios. A AIB foi então organizada em seis departamentos nacionais: Organização Política, Doutrina, Propaganda, Cultura Artística, Milícia e Finanças – cujos líderes também seriam de indicação pessoal.

Barroso foi designado comandante da milícia. Era mesmo o que desejava, o que lhe atraía por seu temperamento, e ele puxou, para seu chefe do Estado-Maior, o capitão do exército Olímpio Mourão Filho.

O departamento de doutrina coube a Miguel Reale. Ele, que tinha um temperamento muito distinto do de Barroso, encontrava ali a função perfeita. Afinal, para Reale a questão da identidade nacional, tão cara a Barroso e Plínio, lhe era menos sedutora.

O II Congresso Nacional foi aberto no dia 9 de março, em 1935, na cidade de Petrópolis.

Não foi um congresso tão abrangente quanto o do ano anterior, mas deu nova estrutura a uma AIB que crescia em ritmo acelerado. Departamentos como os comandados por Barroso e Miguel se tornaram Secretarias, com mais gente no entorno e em maior número de unidades. Eram seis, passaram a onze. Além de Organização Política, Doutrina, Propaganda, Cultura Artística, Milícia e Finanças, foram excluídas Arregimentação Feminina e Plinianos, Imprensa, Relações Exteriores e Assistência Social.

Plinianos eram as crianças. Moral e Cívica, boas maneiras, esportes em conjunto com educação integralista. Promoções de colônias de férias, passeios para cinema, teatro e circo, museus ou jogos de futebol. Até escotismo.

Quando amanheceu no Recife o 24 de novembro em 1935, um domingo que nada teria de pacato, os rumores já circulavam. O 29º Batalhão de Caçadores estava amotinado. Naquele dia haveria uma festa à tarde, vários dos oficiais estavam fora, de licença. Em Natal, no dia anterior, uma nova revolta semelhante unindo sargentos e tenentes, à qual se juntaram movimentos sindicais, tomaram a capital e instalara no governo um sapateiro que presidia o que batizaram e instalara no governo um sapateiro que presidia o que batizaram de Comitê Popular Revolucionário. Aos gritos de “viva Luís Carlos Prestes”, diziam-se comunistas. O mesmo tipo de movimento parecia estar em curso, agora, na capital Pernambucana. Era o momento perfeito.

Em 5 de Julho, aniversário dos levantes de 1922 e 1924, divulgou um manifesto assinando como presidente de honra da ANL. “A situação é de guerra e cada uma precisa ocupar seu posto”, escreveu. “As massas devem organizar a defesa de suas reuniões e preparar-se ativamente para o momento do assalto. abaixo o fascismo! Abaixo o governo odioso de Vargas! Por um governo Popular Nacional Revolucionário! Todo o poder à ANL!”

O Manifesto de Prestes foi a desculpa perfeita para dissolver a ANL baixar uma dura Lei de Segurança Nacional que em pouco tempo foi apelidada de Lei Monstro. Ficava proibida a “incitação ao ódio entre as classes sociais”. O Presidente da República passava a ter o poder de ordenar o fechamento de Sindicatos e associações profissionais, expulsar do Brasil estrangeiros, demitir funcionários Públicos.

Na madrugada de quarta-feira, 27 de novembro de 1935, um grupo de militares rendeu oficiais e tornou o 3º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha. O mesmo era para ter acontecido na escola de aviação militar, na sede da Marinha e em quartéis da Vila Militar. Brigadas de operário sindicalizados deveriam armar escaramuças em diversos pontos da cidade, gerando tantos focos de atenção que pudessem desnortear o governo. A companhia de luz e estradas de ferro deveriam ter sido atacadas. Mas nada aconteceu. Só o 3º RI se amotinou.

O que Prestes não sabia é que a rebelião em Natal já havia caído, que a do Recife nem sequer chegara a dominar a cidade. Que o homem responsável por barrar boa parte da revolta carioca fora um velho parceiro de armas – Eduardo Gomes, o último sobrevivente daqueles 18 do Forte.

A tentativa torpe de revolução, planejada no ambiente de desinformação e autoengano, antecipada por falta de coordenação, caiu por terra em muita dificuldade. Não à toa, a história a registrou como Intentona Comunista.  Intentona, pois, a palavra para pelo insensato, temporário, com amplo risco de dar errado.

A caminho de completar 5 anos, a AIB havia se tornado uma máquina midiática. Era profundamente moderna embora, entre os dois polos radicais, a ela fosse garantida uma liberdade de ação dentro da legalidade que a extrema-esquerda nunca teve.

O termo “midiático” não existia na época. Mas, espalhando-se Brasil adentro, foi montada uma rede de doutrinação. Havia meninos escoteiros integralistas, escolas integralistas, imprensa integralista, tanto jornais quanto revistas. Cursos para senhoritas e para senhoras, agremiações culturais para facilitar os encontros, o convívio continuado com urgente que pensava igual. Programas de rádio integralistas, cerimônias para os homens, cerimônias de toda sorte, sempre norteadas por um espírito de hierarquia clara, e também camaradagem. Plínio, Barroso e Miguel escreviam, escreviam, escreviam. Produziam intelectualmente com velocidade, lançando livros e mais livros. Era possível passar uma vida inteira dentro do integralismo.

Era possível passar uma vida inteira dentro do integralismo. Mas não bastava. Era preciso que todos passassem a vida no integralismo. Era preciso tornar o Brasil um estado integral. Era preciso preparar o caminho. Em 1938 seriam celebradas as eleições para Presidente da República. E Plínio Salgado seria candidato.

A ÚLTIMA MARCHA

Os integralistas guardavam, para 1937, uma imensa esperança. Era ano de campanha eleitoral, ano de começar enfim seu caminho para o Palácio do Catete. Para a Presidência da República. Para fazer do Brasil um país sem partidos, integral, um novo conceito de patriotismo corporativista. Sonhavam, eles. Como sonhavam, outros, com a sucessão de Getúlio Vargas.

Pois não tinham qualquer motivo para não sonhar. O ano de 1936, após o caos de 1935, havia sido tranquilo. E em seu discurso de ano novo, com sua onipresente voz anasalada, as sílabas tônicas aguçadas ao término de cada período. Getúlio desejou felicidades a população assinando com mudanças. “Em 1935, quando uma nuvem turva de olhos ameaçava os lares brasileiros, vos Prometi a garantia de todos os direitos dentro da ordem legal”, lembrou. “O ano que vai entrar terá parte das energias nacionais voltadas para o debate em torno da campanha presidencial. De minha parte”, ele garantiu, “ farei quanto for possível para que o pronunciamento da União Nacional ocorra dentro dos marcos da democracia ativa, em atmosfera livre e sadia, circunscrito ao debate pacífico dos comícios.”

Após o novembro de 1935, desde o fracasso da Intentona Comunista, o Brasil muito muito rápido se transformou noutra coisa. Após o levante, o ex-ministro da Guerra, Pedro Aurélio de Góes Monteiro, pressionou Getúlio a emendar a Constituição. A ameaça comunista se tornara concreta, argumentava Gois. “É a mais terrível da história do Brasil”, afirmou.

Góes Monteiro, um general que ao longo dos anos ganhou tino político, o havia convencido de que não era a hora de fechar o Parlamento.

Assim, antes que 1935 terminasse, os parlamentares aprovaram três emendas à constituição promulgada em 1934. Uma permitia a demissão sumária de funcionários públicos acusados de crimes políticos. Outra dá para poder tirar patente e expulsar das forças qualquer um militar culpado de subversão. A mais importante o Presidente da República a decretar estado de guerra perante qualquer “comoção intestina grave” no país. A Lei de segurança nacional aprovada meses antes, a Lei Monstro, já havia permitido fechar jornais oposicionistas. A Constituição Liberal Democrata não era mais nem liberal, nem democrata.

Mas ia piorar. Quando 1936 veio, instaurou-se uma Comissão Nacional para Repressão ao Comunismo. Depois, o Tribunal de Segurança Nacional. Ao criar estruturas de exceção para inquérito e julgamento, o governo que ainda não era uma ditadura escancarada abriu espaço para toda sorte de delações. Os juízes foram escolhidos a dedo para aceitar as acusações que lhes fossem apresentadas e condenar seguindo a sugestão de pena dos promotores. E, assim, o governo de Getúlio Dornelles Vargas abriu seus porões.

A herança da Intentona estava dada – o governo Vargas havia mergulhado num ataque até contra os seus.

De Washington, onde servia como embaixador, Osvaldo Aranha assistia aflito à transformação do país. A experiência norte-americana o converterá de vez à democracia liberal, e seu flerte com o fascismo havia muito se perderá no passado. Dada a intimidade com Getúlio, decidiu-se por escrever. “Foram apontados, e até presos como comunistas, deputados super nacionalistas!”

Raramente Aranha fazia uso de tantos pontos de exclamação.

“Não é tudo, os professores de Direito e Medicina foram presos como autores morais de novembro! Mas, Getúlio, tudo isso ou é inconsciência ou loucura, ou maldade de teus policiais! Em que influíram esses professores ou esses deputados no ânimo dos militares que tomaram parte do movimento? Não creio, Getúlio, que possa concordar com tantos desacertos, cujos resultados são vivermos hoje de incertezas e sobressaltos. Talvez não fique satisfeito com estas minhas observações. Eu as faço porque na pior hipótese, ainda contrariado um pouco com o teu amigo, sei que farás uma revisão dos fatos e acontecimentos – e isso já é uma vitória para quem, como eu, confia na segurança das tuas opiniões e juízos.” Numa carta, o presidente já havia escrito a seu Embaixador. “A atividade de Filinto Muller tem sido incansável. Sereno e persistente, sabe conduzir a ação policial, obtendo resultados felizes sem necessidade de excessos.”

Barreto Pinto. Assim, o parlamentar do funcionalismo juntou os papéis e pôs-se a ler o manifesto-programa assinado por Plínio Salgado, o compromisso integralista para a eleição presidencial de 1938. “O Brasil não pode realizar a união íntima e perfeita de seus filhos enquanto existirem estados dentro do Estado, partidos políticos fracionando a nação, Classes lutando contra classes, indivíduos isolados exercendo ação pessoal, pessoal nas decisões do governo”, havia escrito Salgado. “Não destruímos a pessoa como o comunismo, nem a oprimimos, como a Liberal democracia: dignificamo-la”.

Foi quase instantâneo que os outros deputados começassem a se mover. “Por que ele questionava a democracia?”, perguntou num brado um parlamentar gaúcho. “Porque ela está podre”, lhe respondeu de bate-pronto Barreto Pinto. “O senhor deve renunciar”, gritou indignado Ernani do Amaral Peixoto, noivo de Alzira Vargas, filha de Getúlio. Afinal, havia sido eleito por um regime no qual declarava não acreditar. Renúncia era o mínimo.

Das galerias, os camisas verdes aplaudiam cada vez mais alto. Da mesa diretora soaram os tímpanos, o sino que devia impor o silêncio, mas não era obedecido. João Café Filho, que uns 20 anos depois viria a presidir o país, intercedeu. “Estamos numa república democrática”, gritou, olhando para o presidente da seção, mas apontando para as Galerias ruidosas. “Não podemos consentir nesta afronta”, seguiu, em integral mantinham as palmas e gritavam: “Anauê!”. É preciso que sejam todos presos”, prosseguiu o Café. “Onde está a polícia?” Estava já trabalhando, a polícia legislativa, mas demorou para que conseguisse retirar a multidão.

No dia seguinte ao lançamento da candidatura, circulando pelos homens que compunham o comando da AIB, Plínio foi recebido no Palácio do Catete por Getúlio.

A candidatura do sigma às eleições presidenciais não tem significação de interesse partidário, discurso no rádio, no início de agosto.

Para levantar a campanha, porém, precisa de dinheiro.

Um dos instrumentos foi o empréstimo vultoso concedido pelo governo alemão por meio do Banco Alemão Transatlântico. Era o Eixo financiado os fascistas brasileiros.

O empréstimo nazista não foi a única fonte a qual Plínio recorreu. Não eram poucos os empresários brasileiros que temiam o avanço vermelho. Com isso em mente, o Chefe Nacional convocou à sua presença o Capitão Olímpio Mourão Filho. No exército, Mourão havia iniciado a carreira combatendo o levante tenentista em São Paulo, no ano de 1924. Quando veio a Revolução de 1930, já havia se bandeado para o lado dos tenentes e acabou por ser um dos negociadores da paz, em Minas. Sempre elogiado, vinha crescendo na carreira militar ano a ano. Foi também um dos primeiros oficiais a se juntar à AIB, logo após sua fundação. Por conta da experiência com estratégia, Gustavo Barroso o nomeou seu número dois na organização das milícias integralistas. Naquele ano eleitoral, aos 37 anos, já comandava o serviço secreto integralista enquanto seria, concomitantemente, no Estado-Maior do Exército – o alto-comando. Para ele, Plinio tinha uma encomenda. Queria que pusesse no papel um plano hipotético sobre como os comunistas poderiam tomar o poder no Brasil. “Era para nós mimeografarmos e distribuímos nos meios capitalistas para ver se eles nos davam algum dinheiro”, se lembrou já velho o chefe. “Esse era o objetivo”. Eles não tinham como saber, mas estavam ali iniciando o processo de construir um dos documentos de maior impacto da história da República.

Algumas páginas entrariam para a história como Plano Cohen.

Só que Plínio não gostou. O Capitão lhe entregou a papelada e o chefe Nacional logo se irritou com o tom antissemita.

“Eu li”, se lembrou Plínio Salgado. “risquei muita coisa – ‘isso aqui não serve, essas coisas boas para passar a limpo, depois você me traz’. O Mourão foi e não me voltou mais.”

Nas primeiras semanas de setembro, naquele corrido 1937, um dos muitos integralistas com conexão no governo procurou o Chefe Nacional e lhes avisou que Francisco Campos, ou recém nomeado Ministro da Justiça, queria lhe falar no encontro discreto, mas urgente.

Chico Campos tinha, em mãos, um bloco de folhas datilografadas numa pasta. Era uma constituição, ele a havia escrito sozinho e em segredo, e havia se inspirado nas cartas fascistas de Polônia e Itália.

Campos explicou a Plínio que estava ali por ordens de Getúlio. Ele planejava dar um golpe de estado, suspender as eleições e outorgar aquela Constituição. Queria saber a opinião do líder integralista, para isso, lhe dava 24 horas de prazo.

Pois foi que no dia seguinte se encontraram novamente.

O ministro da Justiça tinha a arma secreta para seduzir Plínio Salgado. “Perguntei qual seria a situação da ação integralista brasileira, ao que o dr. Francisco Campos respondeu que ela seria a base do Estado Novo, acrescentando naturalmente que o integralismo teria de ampliar os seus quadros para receber todos os brasileiros que quisessem cooperar no sentido de criar uma grande corrente de apoio aos objetivos do chefe da Nação. Respondi-lhe que, quando fosse organizado o Partido Nacional, o integralismo deixaria de ser “partido”, seus elementos constituiriam o núcleo, o início daquela grande corrente, mas, por isso, precisava que o integralismo continuasse como associação educativa, cultural, como uma verdadeira ordem religiosa que era.”

Em essência, Campos desenhava para Plínio uma oferta irrecusável.

No dia 27 de setembro. O general Góes Monteiro havia convocado uma reunião urgente e muito secreta, na qual se encontraram também o ministro do Exército, General Eurico Gaspar Dutra, e também o Müller. Aos dois, Góes apresentou um plano que o Estado Maior do Exército, que ele comandava, havia descoberto. Em detalhes, mostrava um projeto de revolução como comunista, e eles precisavam fazer algo a respeito.

Era o Plano Cohen, que agora passava a ser tratado como ameaça real.

Ignora que se tratava de solerte utilização para fins políticos, de um documento que havia sido escrito apenas como peça integrante de um exército”, lembraria mal-humorado Miguel Reale.

Na noite de 30 de setembro, às 19 horas, o programa A Voz do Brasil entrou no ar com uma edição especial. Ali, e nos dias seguintes, seria lido para toda a nação um perigoso plano comunista que tinha por objetivo converter o Brasil no satélite de Moscou.

“As instruções do Komintem para a ação de seus agentes contra o brasil”, informava Correio da Manhã.

O mesmo jornal tratava de acalmar a todos. “Não há motivos para descrença quanto à realização do pleito de 3 de Janeiro”.

No rastro da Intentona Comunista, entre as emendas constitucionais aprovadas, uma dava ao presidente da república autorização para colocar o Brasil em estado de guerra no caso de “comoção intestina grave”. Naquele 1º de outubro, sem ter visto ainda o Plano Cohen em detalhes, um congresso subserviente aprovou o pedido que lhes fazia Getúlio. O país estava, agora, no mais alto estágio de alerta. E os direitos civis, em grande parte suspensos.

Numa carta a um amigo, ainda mesmo em 1936, o embaixador brasileiro em Washington, Osvaldo Aranha, já havia mencionado algo do tipo. “Não acredito mais em eleições”, escreveu, “teremos primeiro uma ditadura, civil ou militar”.

Naquele princípio de novembro, o secretário de Estado norte-americano recebeu informação de seu embaixador no Rio de Janeiro. “O ministro da Justiça me informou que o governo havia chegado à conclusão de que a constituição vigente era de todo impraticável e que havia inadiável necessidade de substituí-la.” Aranha podia suspeitar, mas não sabia de nada. Estava precisa ser ver na situação de que os norte-americanos estavam mais bem informados, e pelo governo brasileiro, do que ele próprio, seu representante legal.

Conforme aumentava o número de pessoas informadas parcial ou completamente, maior atenção da sede da presidência, o Palácio do Catete. Porque não era só um golpe que Getúlio desejava dar. Eram dois – e simultâneos. O primeiro seria evidente. Suspender as eleições, para e outorgar uma nova Constituição. Manter-se no Poder sem a necessidade de um pleito. Era preciso um discurso que desse alguma legitimidade, mas tudo estava organizado. O Segundo era mais delicado e exigiria muito malabarismo. A estrutura do comunismo, no Brasil, havia sido desmantelada. A do fascismo, não. O fascismo era mais uma ameaça maior.

A preocupação não era apenas com a concorrência integralista. Getúlio Vargas tinha plena consciência de que estava para outorgar uma Constituição fascista. Não foi à toa que Chico Campos tratou de informar o embaixador norte-americano. O governo brasileiro se equilibrava entre as boas relações com Berlim e Roma e também com Washington. Com aquela carta, e apoio do integralismo, o presidente não teria como manter a neutralidade. Seria como escolher um lado, porém, ele não tinha escolha. Precisava destruir a AIB. Mas fazê-lo não seria simples conforme aumentava atenção no Catete.

Chovia forte, na madrugada de 10 de novembro de 1937, quando a cavalaria policial cercou o palácio Tiradentes, sede da Câmara de Deputados. Naquele dia, ninguém teria acesso ao prédio.

E naquela manhã, com exceção de um, todos os ministros assinaram a quarta Constituição brasileira.

“Centralização do poder político; liquidando do divisionismo federativo; criação de órgãos técnicos constituídos com ampla participação das classes produtoras organizadas para assessorar a orientação política e econômica nacional, atribuída precipuamente ao presidente da República”, foi como descreveu a Carta de 1937 o jurista Paulo Edmur de souza Queiroz. “Compulsão co sindicalismo profissional urbano, como fomento do espírito associativo; redução drástica da influência do Poder Legislativo, órgão, no Brasil, contaminado pelo aventureirismo político e por meio do qual se mantinham, sem alternativa racional, os defeitos mais graves da sociedade patrimonialista em decomposição; liquidação dos chamados partidos políticos. “O poder do chefe do Executivo avançava sobre o legislativo, sobre os governadores ou qualquer outro. Aliás, o presidente passava a nomear os governadores. Ao batizar de estado Novo o regime que nascia, ainda por cima citava aquele que António de Oliveira Salazar construíra em Portugal. Não demorou muito, para incômodo de Getúlio, para que a Constituição ganhasse entre as elites o apelido de Polaca. Afinal, repetia os conceitos jurídicos da Polônia fascista.

“De todos os estadistas vivos, Vargas é sem dúvida o mais frio, o mais racional e o mais cínico”, escreveu no dia do golpe um observador que talvez não gostasse do presidente, mas que reconhecia nele uma habilidade ímpar. “Não conhece emoção de espécie alguma. Para ele, a lealdade e o respeito não têm sentido.”

Dá certo e da Ação Integralista Brasileira, primeiro eufórico e depois cada vez mais chocado, Plínio Salgado constatou que em nenhum momento os integralistas foram citados no discurso. Da promessa de que formariam o partido base do novo regime, nenhum sinal. “Não se escuta nenhuma palavra para o integralismo”, lamentou. “Por todo o país, ouvindo o rádio, 1,5 milhão de brasileiros baixaram a cabeça amargamente.” Se o silêncio poderia ser interpretado com ambiguidade, numa entrevista uns dias depois o presidente deixou claro. “A nova constituição não é nem fascista, nem integralista”, afirmou. “O apoio dos integralistas foi espontâneo, não ovo fedido de compensação, nem compromisso”. Ainda mal-informado pelos homens de Plínio, o presidente do senado italiano celebrou o Estado Novo. “Os camisas-verdes são filhos, ou irmãos mais moços, dos nossos gloriosos camisas-negras.” Da Alemanha, o ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, viu em Getúlio um político realista e hábil. Chico Campos, já apelidado Chico Ciência, dava entrevistas em série. “Uma experiência centenária demonstrou que o princípio de liberdade de um resultado o fortalecimento cada vez maior dos fortes e o enfraquecimento cada vez mais dos fracos, só o estado forte pode exercer a arbitragem justa.” Enquanto, nos bastidores, Getúlio conversava pessoalmente com o embaixador americano. “É ridículo pensar que os alemães, os italianos ou os japoneses tiveram algo que ver com a recente mudança de regime”, tentou tranquilizá-lo. “Da mesma forma, os integralistas em nada contribuíram para ela.”

Mas em Washington, o único dos políticos próximos que Getúlio considerava também amigo pessoal, estava em ira. Posto para fora do círculo dos previamente informados, Osvaldo Aranha pediu demissão do cargo. O Presidente recusou a demissão e solicitou que um ministro tentasse acalmá-lo por telefone. “Não posso concordar com uma constituição escrita por um anormal, sem normas, sem regras”, explicava contrariado, emocionado. “Defendi com toda a minha energia o nome do Brasil neste País. Mas essa constituição é uma afronta à liberdade. Aprovou um golpe do governo, mas não um golpe na Constituição. Você bem sabe que considero qualquer assunto do Getúlio como um assunto de família, mas não posso receber um dado desses, de escrava escravidão.”

Enquanto isso, igualmente desorientado, Plínio não conseguia aceitar que, assim próximo de conseguir o poder que tanto buscará, havia sido alijado num repente. Um dos camisas-verdes guardou memória vivida do momento. “Um misto de tristeza e revolta nos dominava a todos”, lembrou. “Romarias incessantes verificaram-se, diariamente, à residência de Plínio Salgado.

Plínio Salgado não era Benito Mussolini. Não era Adolf Hitler. Não era Antônio Salazar, Francisco Franco ou o polonês Jozef Pilsudski. Enquanto muitos dos integralistas ainda buscavam sua orientação, os mais próximos, como Miguel Reale e Gustavo Barroso, lentamente se afastavam, num misto de emoções.

Sempre havia demonstrado, porém, hesitação ao tomar decisões sobre pressão. Quando tinha a garantia de autoridade plena, funcionava. Quando sem, congelava. Naqueles dias imediatamente após o golpe de Estado, um jogo de xadrez político se deu entre Getúlio e Plínio, sem que Plínio tivesse dele total compreensão. A partir do choque de 10 de novembro, o Presidente da República se lançou em movimentos simultâneos. Queria deixar Plínio inseguro. Queria convencê-lo a aceitar um ministério em troca de quê dissolver-se a AIB. queria tava Cavalcante de sua esfera de influência – e, assim, de boa parte do Exército.

Inseguro, Plínio Salgado paralisou. Paralisado, não assumiu a responsabilidade por um contragolpe militar.

Era o papel do líder.

O artigo segundo da Polaca deixava claro: “A bandeira, o hino, o escudo e as armas nacionais são de uso obrigatório em todo o país. Não haverá outras bandeiras, hinos, escudos e armas. A lei regulará o uso dos símbolos nacionais”. No dia 27 de novembro, com presença de Getúlio, as bandeiras dos estados foram queimadas numa cerimônia pública. Parecia ser este o objetivo daquelas três frases soltas logo no início da nova Carta. Mas em 2 de dezembro, o Presidente da República fez baixar um decreto-lei fazendo a regulamentação e indo um tanto além. “Ficam dissolvidos, nesta data, todos os partidos políticos”, afirmava o artigo primeiro. “É vedado o uso de uniformes, estandartes, distintivos e outros símbolos dos partidos políticos e organizações auxiliares compreendidos no artigo 1º”, é afirmava o segundo. “Não será permitido aos militares de terra e mar, assim como os membros de outras corporações de caráter militar, pertencerem às sociedades civis em que se transformar em os partidos políticos a que se refere o art. 1º”, complementava o quinto. “Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 1937, 116º da Independência e 49º da República”, concluía, com a assinatura de Getúlio e seu ministério. Poderia muito bem ter sido batizado decreto-lei da AIB.

Em 5 de dezembro, não sem ironia, o Correio da Manhã publicou uma nota: “Já se sabe que o senhor Plínio Salgado, identificado com a resignação, que é tradicionalmente ‘ a virtude dos infelizes’, vai fixar residência em São Paulo”. Ao deixar a Capital Federal, mudando-se para uma casa Ampla na Rua Minas Gerais, no Bairro Paulista de Higienópolis, o Chefe Nacional deixou a AIB nordestina sob o comando de um médico chamado Belmiro Valverde.

Mas Getúlio não pararia ali. A partir de dezembro, os jornais foram notificando no ritmo quase diário uma série de operações policiais contra sedes integralistas.

Numa noite de janeiro, em 1938, entrou na redação do jornal A Ofensiva, uniformizado, um alto oficial da Marinha que procurava o diretor de redação, Olbiano de Melo.

“Informaram-me que a oficialidade integralista tivera uma reunião com seus camaradas do Exército e estavam todos resolvidos a pôr termo àquele impasse.” contou o jornalista. “Revoltarse-iam desse no que desse”. Não era um assunto trivial. Com Plínio ausente, Olbiano o convidou a acompanhá-lo até a casa de Gustavo Barroso, o comandante da milícia.

Não eram só os militares integralistas que conspiravam. No luxuoso Hotel Glória, onde se encontrava hospedados o ex-deputado Otávio Mangabeira, o fluxo dos amigos de Armando de Salles Oliveira, o candidato à presidência preso, era intenso. Passaram a se encontrar por lá os irmãos Jornalista Francisco e Júlio Mesquita Filho, eu também esse Deputado Luiz de Toledo Piza e o Coronel Euclides de Figueiredo e seu ajudante de ordens, o tenente Severo Fournier. Em comum tinham o fato de todos terem participado em posições importantes da Revolta Constitucionalista, em 1932. Se seis anos antes o objetivo havia sido a convocação de uma assembleia constituinte que desse ao Brasil uma Carta Liberal democrática, como depois ocorreu em 1934, 1934 sua nova meta era distinta. Reinstituir a democracia e a constituição de 1934.

Além dos integralistas e dos liberais paulistas, havia uma terceira conspiração em curso. Exilado no Uruguai, inimigo político de Getúlio, o governador gaúcho deposto José Antônio Flores da Cunha estava em conversas aceleradas com um grupo de comunistas, igualmente exilados, mas na Argentina. Ele tinha a seu dispor algo que nem os camisas verdes nem os amigos de Armando de Salles tinham. Dinheiro. Decidiram se juntar – ou quase.

Não eram, Getúlio Vargas e Flores da Cunha, adversários naturais. Quando assumiu pela primeira vez o governo do Rio Grande do Sul, Flores da Cunha o fez indicado como interventor pelo próprio Getúlio, imediatamente após a revolução. Mas o rompimento entre ambos se deu em dois níveis. Primeiro numa tentativa frustrada de lançar Osvaldo Aranha a sucessor de Getúlio. O Presidente não queria, embora fosse o favorito de seu grupo gaúcho. Talvez Getúlio desde o início já planejasse o golpe do estado novo e, com aranha candidato, teria sido mais difícil. Depois, Flores da Cunha defende a maior autonomia dos Estados, maior poder para os governadores e um governo federal com menos garras. Defendia, pois, exatamente o oposto do que propunham tanto os integralistas quanto o novo ditador. Terminou deposto e exilado.

“À tarde, recebi o ministro da Justiça e o chefe da Polícia”, registrou o presidente, no início de março, em seu diário. “Descreveram-me um ambiente de franca conspiração no exército, na Marinha e no elemento civil, dirigido pelos integralistas e secundado por todos os elementos descontentes.” Getúlio chegou a cogitar vestir uma cota de malha por baixo da roupa para visitar as naves, mas chegou à conclusão de que ficaria óbvia sobre o linho branco de terno e foi sem nada. Ele sabia de tudo.

Aos 54 anos, Belmiro de Lima Valverde era um dedicado integralista, secretário de finanças da AIB desde 1934, médico baiano que havia se tornado referência entre os urologistas no Rio de Janeiro. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Medicina e patrono de uma das cadeiras, a 72. Mantinha o cabelo crespo bem curto, lustro pela pasta, partido ao meio de forma a emoldurar seu rosto em duas ondas, uma para cada lado. Fez carreira na capital, mas também na França e na Bélgica. Reale havia escolhido voltar para São Paulo, ficar em casa, onde estava a filha recém-nascida. Barroso se retirara com discrição. Plinio, naturalmente observado, continuava em sua casa paulistana. E assim foi que, em março de 1938, o líder de fato da ação integralista brasileira passou a ser o urologista baiano.

Como o que havia sobrado do dinheiro de Flores da Cunha, Belmiro alugou uma segunda casa para abrigar todo mundo.

A construção dava para um penhasco de granito, naco da Serra do Mar, com abaixo Oceano Atlântico. Lembrava, à sua maneira, o Ninho da Àguia que o Partido Nazista erguerra no topo de uma montanha bávara.

Contavam, para essa missão, com o tenente Júlio Nascimento, um fuzileiro naval que esperava entre os responsáveis pela guarda palaciana.

E foi assim que, nos primeiros dias de maio, o tenente Júlio do Nascimento foi dar no Ninho da Águia. “Fiz sentir ao doutor Belmiro Valverde e a Severo Fournier que eu estaria de serviço no Palácio Guanabara.” Madrugada de 11 de maio. Um Leal integralista estaria no comando da segurança da portaria da residência presidencial. “Só voltaria ao mesmo 36 dias mais tarde.” Eles tinham uma data, mas também problemas. Não estavam prontos. Não estavam suficientemente armados. “Expliquei a Fournier que tinha a convicção de poder afastar a guarda do campo de operações”, afirmou Nascimento. “Bem, se assim é”, lhe respondeu Fournier, “vou conversar com o general Castro Júnior.” O general assentiu. Tinham poucos dias.

No dia 10 de maio de 1938.

A temperatura era amena no Rio de Janeiro. Dessa vez, nenhum deles sequer desconfiava do que estava por vir.

Às 23h ou pouco mais, o PM oficial do dia entrou na enfermaria do quartel de cavalaria da Polícia Militar onde estavam presos Otávio Mangabeira e o Coronel Euclides Figueiredo. Estava acompanhada de outro Coronel, que trazia ordens de soltura. Os dois logo o reconheceram- não era militar, só se vestia como um. Era um integralista. O PM, incomodado com a ordem de soltura naquela hora, hesitava questionar um Coronel do exército enquanto os presos se vestiam – Mangabeira dissimulando resmungar por estar tarde. Dirigiram-se para o pátio quando o policial achou por bem confirmar a ordem. Estavam, Mangabeira e Figueiredo, em frente ao portão.

Quando o PM ligou, quem o atendeu foi Israel Solto, delegado de segurança pública e social, que estava de plantão. Foi sorte. A carta de soltura estava justamente assinada por Souto, que nunca havia assinado carta alguma. No Quartel de Cavalaria, foi um corre-corre – sem ter encontrado o carro que devia estar lá para buscá-los, os prisioneiros fugiram a pé já na outra esquina. Foram alcançados. Mas, na delegacia, alarmado, Souto rapidamente lançou mão do telefone para falar com seu chefe, Filinto Müller, que havia acabado de chegar em casa. Agora eram dois em Alerta. Desconfiando de que uma surpresa poderia vir, o delegado mandou chamar o aspirante responsável pela segurança do prédio e determinou que esta fosse reforçada imediatamente. Então foi cuidar de outra coisa. Quando viu, o aspirante retornava, sua cara esquisita. Avisou que a PM mandaria reforços. Mas ninguém chegava. O aspirante voltou novamente – a PM não tinha reforços para mandar. Souto ainda não sabia, mas aquele aspirante era integralista e sua missão era deixar a delegacia desprotegida. Não aconteceu. Quando um elétrico Filinto Müller entrou no prédio, mão no bolso do paletó, lá uma pistola e o dedo no gatilho, já vinha preparado para um possível ataque. Estava tudo tranquilo e o delegado já via driblado o aspirante e colocado metralhadoras em várias janelas. Ainda assim, o prédio estava vazio. Com ele virou naquele início de madrugada, eram cinco pessoas. Um, traidor.

Foi mais ou menos a essa hora, quando passada a meia-noite já entrava a madrugada, o que um inspetor de polícia civil e sua equipe foram pegos de surpresa por um grupo de vários carros que dirigiam a toda na Avenida Delfim Moreira, que margeia a praia, no bairro do Leblon. Sem entender do que se tratava, puseram-se em perseguição. Ao final, era 0h40, terminaram presos 26 homens, quatro deles armados. Nos carros, um Arsenal em bananas de dinamite. Todos com um lenço triangular branco com a palavra “Avante”. Não tinha ainda como saber, mas um dos presos naquele momento era o Belmiro Valverde, chefe de todos.

Até ali, tudo havia dado errado. A equipe que deveria prender Müller, sua mulher e as duas filhas pequenas nem sequer chegara a sua casa. Os homens tomaram conhaque para ganhar coragem e talvez tenham sido doses demais. Os responsáveis pela prisão de Chico Campos ficaram de prontidão perante seu prédio, em Copacabana. Aguardaram. Aguardaram. Depois se dispensaram – também a eles faltou coragem.

Menos no início de Ipanema, onde vivia o general Góis Monteiro, foi diferente. Porque ele acordou com um grupo de homens batendo frenéticos à porta. Imaginou um ataque comunista. Luzes apagadas, foi discreto à janela – três automóveis, uns 15 homens, todos armados lá embaixo. Sacou o telefone para falar com Müller, que já estava na delegacia. Dele, ou viu que havia um ataque integralista generalizado pela cidade. Sua mulher, a filha e a senhora que trabalhava para a família ficaram muito nervosas. Por 15 tensos minutos, homens tentaram arrombar a porta de seu apartamento enquanto ele telefonava, sequencialmente, para o Palácio Guanabara, o ministério da guerra e o Forte de Copacabana, que ficava a poucos metros. “Os assaltantes, para estabelecer terror, fizeram forte tiroteio na rua”, declarou o general ao escrivão de polícia uns dias depois. “Tinha convicção de que todo o edifício estava cercado e o grupo assaltante devia ser superior a 30 homens, pois dez subiram ao apartamento; uns 15 ficaram numa das ruas e os outros montavam guarda no prédio.” Pois foi aí que, sem motivo aparente, os atacantes se dispersaram.

Quando Góes desceu a rua, encontrou conhecidos que vinham chegando. Estavam no boêmio Cassino Atlântico, também ali bem perto, foram atraídas pelos tiros.

Àquela altura, o general Dutra já estava a caminho do Forte do Leme, ciente de que a residência presidencial estava sob ataque. Cruzou, pois, o Bar Alpino, onde deveriam estar de Tocaia. Eles, os integralistas que tinham a missão de prendê-lo, não o viram. Ironia. E desarmado ele passou, chegou ao forte, onde encontrou apenas um oficial no comando, 12 soldados e um caminhão. Subiu no veículo e tocou para o bairro das Laranjeiras com aqueles doze soldados mal armados para evitar uma revolução. O oficial no comando ficou com a missão de arranjar mais gente e partir para proteger o presidente. De bonde.

Até ali, o único refeito da noite havia sido o porteiro de Góes Monteiro. Não ficaria assim. Um outro refém seria feito. E não ia ser qualquer um.

A maior parte dos homens que chegaram num caminhão à porta do Guanabara, quando o 11 de maio mal passara da 1h, só soube que a sua missão seria a principal da noite quando já estava a caminho. Foi um longo percurso – uma hora e vinte minutos de um silêncio exasperante desde o Ninho da Águia.

Dentro do Palácio, o Capitão Tenente Isaac Cunha, oficial de dia, ouviu o primeiro estampido quando lia um romance, recostado à cama. Ele se levantou sobressaltado, tomou uma metralhadora e partiu para a porta principal. No caminho se encontrou com o policial Manoel Pinto, que também cuidava da segurança da primeira família. Protegidos pelas colunas e armaduras da escada, viram ao longe o que parecia ser uniformes de fuzileiros com o curioso lenço branco atado no pescoço. Pareciam querer avançar. Os 2 retribuíram os tiros que vinham, preocupados – tinham poucas armas e munição. O policial avisou que ia à frente fazer um reconhecimento. O capitão-tenente tentou contê-lo, o movimento era irresponsável. Mas não houve tempo. Só viu onde sua sombra na penumbra reagindo às ordens de mãos ao alto. Fora rendido.

Devido às informações de Pinto, à falta de Socorro ao ditador e ao fato de já haver decorrido tanto tempo de ação no Palácio, começávamos a acreditar em Vitória.

De fato, no interior do Guanabara, a situação era crítica.  Alzira, a filha do Presidente, havia acabado de se deitar quando ouviu o primeiro tiro. Foi o segundo, seguido de um grito no quarto ao lado, que a fez se levantar sobressaltada. “O que vi me surpreendeu, mas não chegou a assustar. No Jardim, às escuras, uma porção de homens corriam dando tiros contra as paredes. Ela saiu do quarto em disparada e deu com seu pai, vestindo pijama, um revólver à cintura. Tendo descido ao piso térreo, encontrou o Capitão Tenente Cunha e ainda o policial Pinto, pouco antes de ser detido. Eles ah informaram do ataque. O impacto dos tiros fazia com que pedaços de tinta seca do teto caíssem sobre eles. Os integralistas haviam tomado o cuidado de cortar as linhas telefônicas do Palácio, mas não tinha uma informação chave. Havia uma linha especial, de trabalho, e esta permanecia intacta. Foi dela que Alzira conseguiu ligar para o Catete. “O telefonista vibrava de indignação e prontificou-se a fazer os contatos necessários.” O homem logo conseguiu contemplar uma ligação de Alzira com o chefe da Polícia, Filinto Müller. Ele já estava informado e afirmou já ter enviado a tropa de choque.

Dentro do Palácio, revólver à mão, Bejo e um amigo da família se puseram de guarda, prontos a sair atirando caso alguém entrasse.

Já eram quase 5h quando chegou o caminhão com o ministro da guerra e seus 12 soldados. Um de seus homens entrou lentamente e avisou Nascimento. “O General quer saber como vão as coisas aí”, disse. “Mandei que virasse de costas e apontei-lhe a pistola”. lembrou o tenente. “Pediu-me que não o matasse. Ordenei que regressasse e dissesse ao General que o comandante da guerra se revoltara e tínhamos toda a munição nas mãos.” A situação piorava.

Quando os homens de Dutra, animados pelos reforços, tentaram novamente forçar a entrada, Nascimento não viu mais Fournier.

Ainda havia mais escuro do que claro no céu quando soldados e policiais tomaram os jardins de supetão.

Na manhã do dia 11, Getúlio Vargas vestiu um terno escuro de jaquetão e três botões, pôs uma gravata de listras, lenço ao bolso e chapéu de feltro. Tinha o rosto sereno como se houvesse dormindo pesado.

De sua casa na rua Minas Gerais, Plínio ouviu tudo. Foi do êxtase ao luto em uma madrugada. Talvez tenha sonhado com um reich. Depois achou melhor buscar um lugar para se esconder.

DEPOIS

Plínio Salgado se mudou de Higienópolis para o Jardim Europa, naquele tempo um bairro novo, deserto, discreto. Viveu lá por oito meses.

Terminou preso em maio de 1939. Em junho, partiu para a Europa, onde viveu seu exílio na terra de Salazar. Retornou ao Brasil após a democratização e fundou o Partido de Representação Popular.

Elegeu-se deputado federal em 1958, reelegeu-se em 1962 e, quando houve a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, nas semanas anteriores ao golpe de 1964, Plínio esteve entre os oradores.

Durante a ditadura militar, que apoiou, se elegeu novamente deputado pela Arena em 1966 e 1970. Quando morreu, em 1975, seu enterro foi acompanhado pelos principais nomes de todas as forças políticas, incluindo o principal político da operação à época – Ulysses Guimarães. Tinha oitenta anos.

PLÍNIO E BOLSONARO

Estudamos história por muitos motivos – entre os mais importantes está encontrar pistas para compreender o presente. Ao longo dos últimos meses, reconstruindo para as páginas deste livro a década de 1930, foi inevitável que comparações com o Brasil dos anos 2010 e 2020 surgissem. Como a extrema-direita daquele tempo se compara com a atual? É possível tirar conclusões ao colocar esses dois períodos lado a lado? Sim, é. Mas, para chegar lá, é preciso compreender o que estamos comparando. É preciso entender o que foi o fascismo europeu, como e por que ele surgiu, como se comparava a ele o fascismo brasileiro e, só então, tentar buscar naquele mundo e naquele Brasil pistas sobre o hoje.

Apesar da Batalha da Praça da Sé, o fascismo brasileiro era mais organizado, mais estruturado, e contava com maiores números que o comunismo. Em grande parte, é por que o fascismo encontrou, ao menos até o Estado Novo, um espaço de tolerância no governo de Getúlio Vargas. Os comunistas não tiveram algo assim. Se Isto talvez explica o curto alcance comunista, não explica o crescimento da Ação Integralista Brasileira. Só uma coisa explica, um traço que preferíamos negar. Está em nosso DNA político. Na sociedade brasileira, no caldo de cultura que reúne crenças, histórias que contamos a nós mesmos, os muitos valores, o conjunto daquilo com que criamos a ideia de Brasil, a resposta para um movimento fascista de grande porte.

Getúlio Vargas ganhou a partida de xadrez por dois motivos. O primeiro: Agiu cedo o bastante. Compreendeu que o movimento estava crescendo e que, um ano ou dois mais tarde, talvez estivesse grande demais para ser destruído. O integralismo ameaçava seu poder. O segundo motivo é que Plínio Salgado era um indeciso. No fim, é óbvio. Getúlio era um político maior. Se política é um jogo de estratégia, o velho caudilho via o tabuleiro todo, o cenário político brasileiro com todas as peças distribuídas. O Chefe Nacional da AIB só enxergava o naco que cabia a seu movimento. Getúlio leu melhor o cenário e tomou decisões destemido.

O que nos traz a uma pergunta fundamental que vem escoando em nosso tempo: o que é o fascismo? O fascismo não nasce no vácuo. Não é um movimento genético. Por isso mesmo, vale rever a história. Vale caminhar para algumas décadas antes.

O caso Dreyfus, que explodiu um século após a queda da Bastilha, se tratava de algo maior que o destino de um homem. Se o jovem oficial foi enfim inocentado numa mobilização que juntou intelectuais liberais franceses, nos anos seguintes cresceu um grupo também de intelectuais chamado Action Française. Eram católicos, monarquistas, e, em essência, gostariam de voltar a 1788. Eram aristocráticos e antiburgueses. Extremamente cultos. Era novo, e era velho. Era novo porque o discurso anti burguês que marcou a Europa no século XIX foi o marxista. Vinha pela esquerda. Seu problema com o liberalismo não vinha da aristocracia, vinha do proletariado. Vinha das condições desumanas dos trabalhadores nas fábricas da revolução industrial. Vinha da fome, do crescimento desordenado das cidades, das crianças condenadas a não ter infância enquanto labutavam no chão de fábrica. Vinha, em suma, dos pontos que a democracia Liberal não conseguiu resolver. Mas a Action Française construía sua crítica de outra forma – remetia a um passado baseado em valores morais, baseado na igreja, em Deus, e na justiça dos Reis e nobres donos de terras.

Por definição, a Action Française era reacionária. Exatamente o oposto de revolucionário. O reacionário quer a restauração de um passado, que em geral enxerga por lentes realizadas. O revolucionário quer a implantação de uma nova ordem radicalmente distinta.

Benito Mussolini era um homem brilhante. Vinha de político remetia à infância, solidamente ancorado entre o anarquismo, o socialismo e todos os aprendizados sobre como mobilizar gente que ambos acumularam ao longo de dúzias de anos.

Era um leitor voraz. Rompendo com o Partido Socialista por sentir que devia combater como soldado pela Itália, ao final do conflito precisou inventar um novo campo político onde se encontrar. Daí construiu uma nova síntese louca. A mistura de um movimento revolucionário com um reacionário. A promessa de instaurar ordem por uma revolução – é uma contradição em termos. Como se fosse possível fundir a extrema-esquerda com a extrema-direita. Pois foi. E, fincado na extrema-direita, juntou um grupo de veteranos das tropas de elite italianas na guerra, os organizou utilizando as técnicas da esquerda, cultivando os ritos da direita, assim criando os camisas-negras. Inventou o fascismo no caminho – a junção de um movimento revolucionário com um reacionário. O encontro dos extremos.

Pois já não era mais como a Action Française. Não era aristocrático, era popular. Como Os Comunistas, criticava a burguesia liberal olhando de baixo. Mas, diferentemente do comunismo, não baseava sua crítica numa leitura econômica da história, no movimento de grandes blocos sociais. Baseava sua crítica numa leitura moral da história. Como a direita reacionária, remetia à fantasia de um passado virtuoso que teria sido perdido por falta de comando, falta de vontade. Por Fraqueza. Demonstrações de força eram parte importante do credo fascista.

O fascismo deixa a esquerda marxista sem discurso – em sua essência, é o nó tático. Porque seu proletário é o único que pode decidir sobre seu destino e ele escolhe o fascismo, como responder? E o fascismo acena com uma identidade positiva. O indivíduo não é proletário. Não é essa sua identidade – não são as condições econômicas que definem a pessoa. Sua identidade é ser da Itália. Um filho, uma neta, do Império Romano que inventou a Europa. A pessoa é especial. Dribla, simultaneamente, marxismo e liberalismo. O liberalismo porque sua defesa exige um debate sobre liberdade que não é intuitivo. Muito menos emocional – não há o apelo nacionalista. O comunismo porque o fascismo oferece não a utopia da superioridade na revolução de depois, mas a utopia da superioridade do povo a quem você pertence agora. pois agora.

Os movimentos fascistas nascem de massa, nascem populares, uma só se estabelecem no poder a partir de uma aliança com os menos parte das elites. Quem descobriu o caminho e o abriu foi Mussolini.

É nesse momento que ocorre aquilo que Rosas chama de “Noite das Facas Longas”. Em todos os regimes fascistas que chegaram ao poder aconteceu. É quando o pacto entre fascistas e elites se dá, e os movimentos fazem um grande expurgo em seus quadros. Muitos de seus fundadores mais radicais no discurso anti plutocrático e os movimentos fazem um grande expurgo em seus quadros. Muitos de seus fundadores ainda radicais no discurso anti plutocrático e antiburguês são expulsos. Em cada país que foi fascista, esse pacto se deu de uma forma distinta, pois variou no equilíbrio entre as partes na mesa de negociação. NA Alemanha, a desestrutura do Estado era tal que o Partido Nazista se impôs, em essência substituiu o Estado. Mas teve de aplacar sua milícia, vista como desordeira e selvagem pelo exército prossiano, que era aristocrático. Na Itália houve equilíbrio – a monarquia de Sabóia, os generais, os industriais e a Igreja negociaram seu espaço com o fascismo de Mussolini. Houve um convívio de certa harmonia. Em Portugal, o fascismo ascendeu ao poder, mas foi subordinado ao Estado, que tinha força.

O integralismo brasileiro foi um movimento que nasceu entre intelectuais. Foi entre escritores e estudantes de direito que encontrou seus primeiros seguidores.

O integralismo brasileiro se humilhou no primeiro evento de grande porte que produziu. Era para demonstrar força, saiu com todo mundo apelidado de galinha verde. A chave do fascismo em pulsão por violência, e, no seu núcleo, a Ação Integralista Brasileira não a tinha em quantidade suficiente.

Assim, como boa parte do mundo, o Brasil viveu sua ditadura. Mas não foi uma ditadura politicamente extremista.

Num tempo de radicalismos, Getúlio foi o político que conseguiu bloquear, no Brasil, tanto o avanço comunista quanto o fascista. No caso da extrema-esquerda, foi fácil. O movimento, embora com pertinência na elite intelectual, era pequeno. A extrema-direita deu mais trabalho.

O Brasil dos anos 2020 não é o Brasil dos anos 1930.

Mas isso não quer dizer que o DNA cultural tenha mudado. Porque não muda em duas ou três gerações. Este é um processo muito mais lento.

O Brasil viveu três períodos de democracia formal na República. De 1894 a 1930, e 1964, e desde 1985. Todos, em algum ponto, entraram numa crise de legitimidade. Na Primeira República, porque o jogo entre São Paulo e Minas não permitia a ascensão de presidentes vindos de outros países. Ficou viciado. Na República de 1945, porque um sistema que elegia presidente e vice-presidente em separado trouxe um presidente de direita e o vice de esquerda e, dia da renúncia repentina do primeiro, se sistema político não foi capaz de se recompor, espatifado em disputas internas e pressionado pelo anticomunismo golpista dos militares. Por fim, a Nova República também encarou uma crise – e a crise, novamente, estava na incapacidade de as forças políticas encontrarem um espaço de recomposição na disputa de poder.

Pelo menos um analista e dois cientistas políticos observaram que, no coração da Operação Lava Jato, estava a mesma origem do tenentismo. São o jornalista Murilo Aragão, o professor da PUC-Rio Luiz Werneck Vianna e, quem foi mais fundo na comparação, o professor do Iesp-Uerj Christian Edward Cyril Lynch. São movimentos que nascem de uma insatisfação social. Na Primeira República, a insatisfação se deu a partir de dois grupos. Os operários que começavam a se organizar e uma classe média, principalmente de funcionários públicos, que se formava. Ambos não encontravam espaço de participação no governo oligárquico. Os tenentes que se levantaram em 1922 e terminaram por derrubar o regime, colocando Getúlio Vargas no poder, eram funcionários públicos, carregados desse espírito da indignação da classe média ascendente com a corrupção do sistema. Os procuradores que levantaram a partir de 2014 eram funcionários públicos, carregados desse espírito da indignação da classe média ascendente com a corrupção do sistema. Os tenentes foram uma criação da primeira república: a primeira turma de Oficiais profissionalmente treinados, aprovados por concurso público. Os procuradores foram uma criação da Nova República, por meio da reformulação do Ministério Público pela Constituição de 1988. E ambos os grupos se embalaram em uma missão que encarnaram como sua, talvez de forma quase religiosa. Talvez messiânica. Tenentes e procuradores se outorgaram uma missão. E um bom pedaço da população, não encontrando na paralisia política respostas, os abraçou como heróis. Nos anos 1920 como nos 2010.

O governo de Getúlio Vargas incluiu parte do tenentismo, mas trouxe outras forças. Da mesma forma, o governo de Jair Bolsonaro inclui parte da lava jato por um tempo, embora traga outras forças.

O Brasil não é uma ilha, faz parte do mundo. Já não era aquele tempo, hoje muito menos. A década de 1930 é fruto da consolidação da economia industrial na Europa e do terror da Grande Guerra. Não vivemos uma guerra como aquela. Mas estamos vivendo um período de transição econômica equivalente. A Era Industrial acabou e se iniciou uma nova, com a economia baseada no Digital. O período de transição da Agricultura para a indústria provocou o êxodo rural e, no primeiro momento, gerou muito desemprego. É evidente. Negócios que funcionavam benção fazia décadas de repente paravam de funcionar. Novos negócios surgiram exigindo mão de obra especializada de outro tipo. Havia muitos sem as habilidades necessárias para a nova economia. A transição da Indústria para o digital não é diferente – em que emprego existiam desaparecem, novos surgem, há crise de habilidades e uma desorganização geral do todo. Como no passado, gera angústia pessoal. Incerteza a respeito do futuro. Nostalgia de uma estabilidade que existiu e vai demorar até reaparecer.

Havia convicção de que a democracia era um sistema de governo fracassado. O discurso que tanto Plínio Salgado quanto Chico Campos faziam, de desprezo à democracia liberal, era compartilhado por muitos, e não apenas na direita. Hoje, prezar Democracia é um tabu. É preciso, ao menos, fingir-se democrático. Vale para a presidência de Donald Trump nos Estados Unidos, a de Viktor Orbán na Hungria, e a de Jair Bolsonaro no Brasil. Muitos cientistas políticos se referem ao regime construído por Orbán como Democracia Iliberal. Parece democracia na forma, não respeita mais liberdade individuais.

A grande novidade política do mundo, não apenas do Brasil, neste princípio de século é o ressurgimento desta Nova Direita, que opõe seu nacionalismo aos ideais do sistema de governança global criados no pós-guerra e ampliados a partir da Globalização nos anos 1990. Que trata com desprezo os ritos da democracia liberal – que, ora, é abertamente iliberal. Que é xenófoba, com uma profunda desconfiança dos grupos que considera diferentes. Que não reconhece legitimidade na oposição, que despreza imprensa livre, e trata política como guerra. Que é tão atraente, principalmente, para homens jovens.

O bolsonarismo é um novo fascismo?

Não custa lançar uma dá maior diferença. O discurso econômico é liberal – de um liberalismo racial, que remete a Escola Austríaca. Este não é um detalhe. Para lançar sua rede, uma vez no poder, o fascismo precisa do Estado. É através do estado que doutrina pela educação. Que captura as indústrias pelo controle que exerce sobre a economia. Que regula as mensagens, seja pela arte, seja pela imprensa, graças aos monopólios sobre violência e financiamento. O Ministro da Economia, Paulo Guedes, passou a vida pregando a doutrina do estado mínimo. Não é só o oposto. É também importante compreender de onde vem essa sua ideologia.

O liberalismo, que nasceu com John Locke na segunda metade do século XVII, evoluiu pelo tempo através de inúmeros filósofos e economistas, se bifurcou incontáveis vezes. Não há liberalismo – há liberalismo. Em comum, todos têm a defesa da liberdade individuais. Mas o que isto quer dizer varia de acordo com o tempo e o lugar. Os utilitaristas Ingleses da segunda metade do século XIX enxergavam os problemas sociais causados pela rápida industrialização e concluíram que ninguém é livre se não tem renda que lhe garanta dignidade mínima. É esse liberalismo que vai dar no New Deal Americano dos anos 1930, puxado pelo inglês John Maynard Keynes. É esse liberalismo que apresentou ao mundo o caminho pelo qual democracia eram, sim, capazes de oferecer Soluções aos novos problemas que, muitos defendiam, só regimes de força como os fascistas e comunistas tinham como encarar.

Foi meu amigo Ricardo Rangel quem me ajudou a observar com empatia a escola Austríaca. Porque o mundo visto pelos contemporâneos de Keynes em Viena era outro Ludwig von Mises e Karl Popper eram judeus vivendo na Áustria em que o nazismo ia lentamente ocupando os espaços Friedrich Hayek não era judeu, mas havia sido criado entre judeus e tinha, entre eles, seus maiores amigos. No mundo desses três homens, o Estado era violentamente opressor. Era a encarnação da violência. Se o liberalismo que propunham é radical no desejo do Estado mínimo é porque respondiam à realidade de um Estado fascista. De um Estado total.

Buscar o Estado mínimo e promover o fascismo são incompatíveis. Numa realidade alternativa na qual jamais houve a pandemia, em que o governo Bolsonaro segue o rumo natural livre de pressões externas, para ser fascista teria de promover um rompimento com sua política econômica. Porque são duas forças contraditórias. O liberalismo defendido por Guedes é, no âmago, uma ideologia de destruição do Estado que tem por objeto impedir que ele se torne fascista. Atua justamente na crença de que algo como o fascismo é inevitável.

É, portanto, contraditório?

Não. E a pista para compreendê-lo está noutra percepção sutil que outro amigo me levou a perceber. Christian Lynch, que como cientista político é especialista em ideologias. Quando Bolsonaro e seguidores falam em liberdade, não tratam da mesma liberdade dos liberais. A busca do liberalismo é a do Estado regido por leis, um Estado no qual todos os cidadãos têm direitos equivalentes. É preciso haver um Estado para garantir essa igualdade. Mas um governo que fala da liberdade de garimpeiros e madeireiros que desmatam perante o “excesso” de regulamentação ambientais trata de outra coisa pela mesma palavra. E a liberdade de se armar com o equipamento que desejar, de comprar munição se, ser rastreado, é uma que só liberdade de o mais forte se impor sobre o mais fraco, algo que o liberalismo inglês jamais toleraria. É iliberal para boa parte dos liberais, mas no limite tem pontos de contato com a parte dos liberais, mas no limite tem pontos de contato com a Escola Austríaca.

Assim, voltamos ao coração daquilo que define o fascismo. É simultaneamente reacionário e revolucionário. Não parece haver, no discurso bolsonarista, o componente revolucionário.

Esse apego que se recusa a permitir que a sociedade avance e se transforme, que quer impor os trajetos do passado, isto é reacionarismo. Jair Bolsonaro é reacionário no talo. O argumento dá voltas e se encontra. Plínio queria regras, muitas regras. Bolsonaro deseja sua completa ausência. A democracia liberal ocorre entre os dois extremos.

O bolsonarismo é fascista? Historiadores como Fernando Rosas dirão que o fascismo é um marco histórico. Algo que houve e tem suas características próprias. Outros, como o americano Robert Paxton, sugerem uma forma diferente de compreender. Mesmo nos anos 1930,os fascismos eram tão diversos que, ele argumenta, é mais fácil enxergá-los pelas paixões que moviam, por aquilo que os motivam e por como se viam, do que pelas ideias. Assim, não é relevante se um é estatista e o outro, não. Importa, isto sim, que o fascismo acredita que a sociedade está em declínio, que ele se enxerga humilhado, que se percebe como uma vítima do sistema.

Pois é. A definição de Paxton é um choque. E Paxton não é qualquer historiador. Quando os franceses julgaram o último colaboracionista nazista, em 1997, o juiz pediu que fosse convocado como testemunha esse professor norte-americano gentil para explicar ao júri francês o que havia sido a França fascista. E Jair Bolsonaro se encaixa na definição que Paxton escreveu muitos anos antes. Encaixar é pouco.

O momento em que nos encontramos na história, tanto no planeta quanto no Brasil, tem muitos pontos de contato, muitas semelhanças, e, assim como o outro, vai refluir. Nenhum sistema tem demonstrado mais resiliência do que a democracia liberal. E claro que a história passa e tudo muda. Mas a liberdade de ser quem se é segue tendo um apelo que aquilo de humano em nós logo compreende.

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